Não me obriguem a vir para a rua gritar



Texto escrito há 10
anos, em 2005, por Eduarda Ferreira
“Não
me obriguem a vir para a rua gritar”
A minha família e
os meus amigos sabem que eu sou lésbica; ando de braço dado na rua com a minha
namorada; damos beijos quando a ternura aperta; assumo-me como lésbica em
programas de televisão; quando falo com alguém que não conheço não oculto ou
disfarço o facto de ter uma relação amorosa com uma mulher e que esse é o meu
núcleo familiar; participo nas marchas e grito bem alto “seja homem ou mulher
eu amo quem quiser”, …
Poderia dizer que
não sou alvo de discriminação e que se tenho algum tratamento diferenciado até
é pela positiva. Todos me tratam com uma delicadeza enorme e com uma atitude
politicamente correcta quando, por exemplo, dou sangue e assumo a minha relação
lésbica, ou quando eu e a minha namorada vamos para um hotel e assumimos que
queremos um quarto com cama de casal, porque somos de facto um casal, estamos
habituadas e gostamos de dormir juntas.
Tudo isto é muito
bonito e maravilhoso, a quantos milhões de anos luz estamos dos tempos da
clandestinidade, do proibido, do escondido. Deveria estar contente e não sentir
necessidade absolutamente nenhuma de vir para a rua gritar, mas … sinto e
sinto-a com muita força e urgência.
Sinto essa necessidade
e urgência, porque neste quadro tão positivo algo me perturba… Dizem-me,
quando falo da excelente relação que sempre tive com os meus pais, sabendo eles
da minha orientação sexual, que tive sorte em ter pais assim. Sorte? Sem dúvida
sorte por serem pessoas extraordinárias que me ensinaram a amar a vida e a
maravilhar-me com toda a beleza que ela tem, mas não de forma alguma sorte por
eles me aceitarem. Só o facto de se dizer “aceitarem” encerra em si mesma a essência
da discriminação, do ser diferente e não simplesmente diverso.
Uma coisa é sermos
todos diversos e ricos nessa diversidade, outra é alguns serem considerados
diferentes em relação a uma maioria, serem o desvio que se opõe à norma.
Não quero ser
“aceite” e suportar o silêncio embaraçoso, mas supostamente simpático de
pessoas amigas da família que calam questões sobre o facto de estar sozinha ou
acompanhada, ignorando a minha vida em comum com a minha companheira.
Não quero a simpatia
que também pode magoar! Quando uma amiga que não vejo há longa data me diz:
podes vir visitar-me, eu sei como vives e estás à vontade para trazer a tua
companheira. Este discurso pode parecer mais uma vez maravilhoso, mas não é! É
como se dissessem: apesar da tua “diferença” não precisas de te esconder nem de
te envergonhar. Mas a mim nunca me passou pela cabeça, nem pelo coração,
envergonhar-me de gostar de alguém só porque é do mesmo sexo que eu.
Dói-me ver @s meus
amig@s lésbicas e gays que se escondem de si próprios e dos outros; que vivem
as suas vidas num jogo de faz de conta para que ninguém saiba ou desconfie da
sua orientação sexual; que nunca, mas nunca em caso algum darão um beijo em
público à pessoa que amam e que mesmo em casa só o fazem longe da janela; que convivem
com os seus amigos e famílias, num clima de sorrisos e hipocrisias, esforçando-se
por ocultar uma das partes mais importantes e significativas da sua vida, a
relação amorosa com a pessoa que amam; que acham que se mostrarem ao mundo que
amam alguém do mesmo sexo estão a “chocar” desnecessariamente os outros, não
conseguindo ver a violência imensa que existe numa sociedade que faz sentir
como errados e negativos sentimentos de afecto e amor, empurrando-os para a invisibilidade.
Por isso digo que
me obrigam a vir para a rua gritar!
Obrigam-me as
pessoas simpáticas que me “aceitam”;
Obrigam-me as
amigas e amigos lésbicas e gays que se escondem dos outros e deles próprios;
Obriga-me o facto
de muitas pessoas a partir do momento em que sabem qual é a minha orientação
sexual passarem a considerar essa a característica mais importante que me
define;
Obriga-me o orgulho
de me sentir feliz e bem comigo apesar de ter crescido numa sociedade heteronormativa,
em que nenhum filme, canção de amor ou livro me mostrou que também se pode amar
alguém do mesmo sexo e que isso pode ser uma coisa bonita, e não um desvio ou
uma doença;
Obriga-me o orgulho
de um dia, depois de muitos anos, poder ir assumindo cada vez mais para mim
própria que não há nada a esconder, mas tudo a mostrar para que outras e outros
não tenham de sentir o que senti, e para que todos possam ser finalmente mais
livres de expressarem de forma mais honesta tudo o que sentirem.
Quero a
visibilidade para que finalmente todos possamos ser mais livres.
Porque quero a
dignidade de ser tratada como igual – sem mais!
E para tal o
primeiro passo é simplesmente dizer: existimos – vejam-nos!
A visibilidade
lésbica é uma postura política, porque tudo o que é pessoal também é político
Por isso temos a
necessidade de vir para a rua gritar!
E quero que muit@s
mais venham comigo!
E faço aqui um
apelo para que estejam connosco na Marcha do Orgulho dia 26 de Junho em Lisboa.”
Este
ano o apelo é para dia 20 de junho no Príncipe Real em Lisboa
🙂