«Dragão e as virgens» | Maria Lacerda de Moura



Autor: Maria Lacerda de Moura
Data: 1931
Fonte: Civilização - Tronco de escravos, pág. 135 - 160

Dragão e as Virgens

Não é critica: é dívida de gratidão.

Num gesto oposto a qualquer gesto de elegância mundana, numa atitude pouco feminina — venho beijar as mãos generosas de Afonso Schmidt, pelas lágrimas doces de piedade que me fez chorar ante a leitura desse livro admirável, se a gente o lê com a alma, sentindo a dôr de viver dentro de uma organização social baseada no privilégio e na brutalidade.

A começar pelo prefácio, do autor, aliás, essa novela de uma conciência livre e de tese social é carícia espiritualizada pela amargura de sofrer a angústia de outras almas, rescende a perfume delicado, é toda a beleza interior de uma criatura a extravasar a sua imensa bondade como benção de ternura por sobre a dolorosa procisão dos tristes e dos explorados.

É uma palavra de Amor e uma lágrima de luz de quem sorriu docemente junto á mulher torturada e sentiu toda a sua tragédia silenciosa, presa inerme da civilização que comercializa com a carne feminina e expõe á venda os sentimentos mais delicados do coração humano, como retalha as vísceras dos animais nos talhos ou fábricas, o álcool para incendiar os filhos nos ventres maternos.

Afonso Schmidt fala aos oprimidos, aos anónimos acicatados pelo rude mourejar de cada dia, acuados pelo progresso industrial, perseguidos, ludibriados na torpeza de uma sociedade de vampiros, cujas garras e cujas ventosas praticam o exercício quotidiano de amortecer a sensibilidade humana no estrangular ilóta de todos os verdadeiros forjadores do progresso material — para a voluptuosidade dos ociosos, e no crucificar de todas as mais altas manifestações da beleza sonhada pelo espirito humano.

Afonso Schmidt é único nesse género literário no Brasil, por isso mesmo, mais admirado no estrangeiro do que na nossa terra, onde as letras pátrias de papagaios e verde-amarelismo empolgam pela estreiteza do cenário.

Afonso Schmidt é nacionalista e o seu problema é o problema humano.

A sua arte não é essa pseudoarte de joeirar expressões sonoras com a paciência de um chinês. A sua arte (que lindo o seu prefácio!) é forjada na rudez do salário para o pão de cada dia, com que os exploradores e os poderosos amordaçam o homem e compram a mulher do povo, sangrando-lhes as mãos e o coração para tripudiarem por sobre a sua dôr inominável.

Afonso Schmidt sente que “estamos numa época em que todos sabem o que é preciso dizer. Quem silencia, tráe; desaparece. Já não ha mais o inútil, há apenas o prejudicial; é tudo o que perverte, toma espaço, absorve energias indevidas.”

Os seus livros, entre eles — “Brutalidade”, “Janelas Abertas”, “Mocidade”, a sua prosa ou os seus versos, tudo quanto esse moço escreve, vai-nos até a alma no perfume do seu imenso espirito de solidariedade para com os que emergem desse incêndio voraz denominado civilização ou progresso, para com os que sustentam o sacrifício inaudito de carregar — novos Atlas-Briaréu — o peso morto do mundo que se aproveita do trabalho alheio.

Este livro toca mesmo na ferida social que mais dolorosamente sangra: é a história da prostituição “necessária” para saciar o apetite sexual do homem que reservou para si todos os direitos de animal na escala zoológica e criou, também para si, os direitos de bruto “requintado” na aquisição de vícios e hábitos que o colocam abaixo do irracional chamado, porém, roubou á mulher o direito mesmo de viver a plenitude das suas forças e das suas necessidades, o direito de ser dona do seu próprio corpo e senhora dos seus instintos (parece incrível que um animal possa governar ou exercer pressão sobre o instinto de outro animal!), roubou á mulher uma parte imensa da sua vida de criatura que evoluciona pelas mesmas leis biológicas de todos os seres da nossa escala de evolução. Mas se o homem, se a sociedade, habilmente e perversamente organizada para a exploração do fraco, tirou da mulher essa parcela importantíssima de vida, por outro lado, inventou, através do Dragão — o Deus Dinheiro — o meio de tragar as virgens, as predestinadas filhas do povo, devoradas nos lupanares e nos bordéis dessa “necessidade” inelutável — para a salvaguarda da pureza problemática de outras mulheres, engulidas umas no casamento legal (outra forma de prostituição), outras acorrentadas ao altar do sacrifício ao Molóc da Honra, pelo relicário da pureza da Familia, de que são depositárias, feitas sacerdotizas, vestais “protegidas” pelo carinho da sacratíssima instituição, transformado em ridículo, em zombaria, em sátiras e ironias mordazes, quando a virgem dobra o Cabo da Boa Esperança… e se torna virgem louca…

E esse livro, cheio de bondade, diz essas cousas tristes por entre o sorriso doce de ternura dolorosa, em expressões que são como um cântico lirico de luar afagando as dores do mundo perverso que organizou tão mal a vida tão bela.

Magistral a sua descrição de tudo quanto em-beleza artificialmente o erotismo: é o cinema que apresenta a nudez dos “interiores” e a vida fictícia dos “Cabarés” — onde há alegrias ruidosas porque não há alegria e, porque só há a busca incessante dos clientes e a concorrência esmagadora da questão económica; onde a fanfarra de alarido, sons, cores e vícios procuram abafar a amargura de um viver doloroso; são as casas de modas, onde as caixeiras afogam-se numa carícia de rendas, sedas e adornos de toda a espécie, num delírio de cores e perfumes capitosos e frascos esguios como a ansiedade do imprevisto, alimentando a curiosidade e a emoção numa atmosfera de luxo e vício, empurradas violentamente para a prostituição — o único meio talvez capaz de as adornar de veludos, peles e joias, de tudo isso que passa pelas suas mãos vazias.

Porque, na vida artificial das cidades, é a sedução, o sensualismo absorvente, o fogo do erotismo, a labareda afrodisíaca a correr pelas veias da moça pobre, já descrente do casamento — um balcão, um luxo a que se podem dar as ricas, as que se vendem através do dote ou da posição social.

As outras, as exploradas no trabalho ou as filhas dos funcionários da pequena burguesia têm, pela frente, quando falha o casamento (e cada vez vai falhando mais), a tristeza da soledade e da vida mutilada no flagelo da “solteirona” ou a estrada larga da prostituição.

Todos fingem não vêr o drama silencioso da “solteirona”, o olhar vago, indefinido, esperando sempre, com a mesma ansiedade dorida, o inesperado, o milagre da felicidade que lhe vae sendo usurpada, cada dia representando um século no seu calendário, enquanto os anos voam, indiferentes, amortalhando as ilusões mais caras.

E se vão a estiolar na “consomption”… E á medida que os dias se alongam, o ridiculo se vae instalando sorrateiro até morar definitivamente ao seu lado, nos seus vestidos, nos seus cabelos, no seu andar, fazendo parte integrante da sua pessoa a ocupar um lugar demais no cenário da vida social, que lhe não quer ceder a parte a que tem direito dentro mesmo da escala zoológica.

A familia e a sociedade não merece tal sacrifício, e, de que vale a himenolatria para a mulher, o preconceito da virgindade, si todos se riem da “solteirona”, da sua atitude de humilhação, das suas roupas insexuadas, da sua melancolia de nos-tálgica de um sonho sonhado em alturas inaccessiveis?

É o aspeto mais doloroso dessa via-sacra da mulher por entre chacotas intermináveis, começa-das no “seio carinhoso da familia” e perdendo-se por todos os recantos da sociedade cristã. É o único prémio merecido pelas vestais do relicário da honra da santíssima instituição.

E tudo isso, toda a ronda dolorosa das tristes e das exploradas vem da sociedade moralitcista, dos privilégios, da civilização nascida “no dia em que houve a partilha da terra, cabendo a uns pão e a outros a fome”.

Para os poderosos, os ricos — o luxo, a ostentação vaidosa, a ociosidade farta empurrando, astuciosamente, o proletário para a engrenagem voraz do progresso, gosado apenas pelos donos da humanidade escravizada ao salário.

Os pobres? O proletariado? Responde Schmidt:

“Depois de ter fabricado a arma que o fuzila e a prisão que o encarcera, olhou para as mãos e viu que estavam vazias. Protestou e prenderam-no. Tirou um desforro e fuzilaram-no. A história do povo, individualizada, é um desses contos do vigário que aparecem nos jornais. Seria para rir, se não custasse oceanos de lágrimas”.

Este livro faz doer o coração: é a tortura de todas as mocinhas pobres que levam chapéus e vestidos modelos ás casas das Salomé, das Magdala, veem o “champanhe” espoucar doirado por sobre toalhas de rendas e risadas sonoras de cristais e por entre os olhares lúbricos dos moços ébrios, dos senhores bem vestidos e das mulheres cobertas de joias, quase nuas, e, depois, voltam para o tugúrio triste, irritante na sua ironia honesta, voltam para sentar-se á mesa quase despida, a comer, silenciosamente, no seio da miséria, do desconforto, do desalento, da desesperança de apertar no coração a felicidade sonhada como nos contos de fadas.

É a história do Dragão fabuloso, o Moloc da prostituição “necessária” a devorar as filhas dos proletários, interminavelmente, sempre insatisfeito na sua voracidade assombrosa de polvo descomu-nal a deitar, por todos os lados, os milhões de tentaculos a se multiplicarem em proporções gigantescas á medida que cresce o progresso material e a luta pela subsistência.

Habituada a ler a meditar, a pensar profundamente o que leio, a ler com o cérebro, com a razão, a ler friamente — nunca para me divertir e sempre para aprender, para penetrar os problemas humanos — este livro fez-me chorar, porque é a dolorosa escalada através da torpeza de uma civilização assentada sobre o vampirismo puritano dos moraliteistas; porque é a angústia da fatalidade criada pelo egoismo sórdido do interesse económico e bestial; é a descrição do macular de tudo quanto deveria ser só beleza, liberdade e harmonia, no pantanal das ambições e das paixões baixas de toda uma sociedade que tem o odor metálico do azinhavre e o “odor cruel” dos instintos sanguinários.

Esse sadismo fez da sociedade inteira um imenso prostíbulo onde toda a mulher não tem remédio senão aceitar a imposição do senhor do cofre-forte, do banqueiro, do funcionário, do militar ou do diretor da repartição onde trabalha, do ge-rente ou do capataz, do caixeiro-chefe, do filho do fazendeiro ou do político a quem vai pedir o meio de ganhar a vida, “honestamente”… pelo seu trabalho.

Nos bancos, nos escritórios comerciais, nas casas de modas, nas confeitarias, por toda parte a mulher é assediada, é perseguida, é acuada como se obedecesse a uma lei fatal, até cair em uma das armadilhas, das muitas que, em cada canto estão preparadas para apanhá-la, ou de surpresa, ou pela fome, ou pela sedução do luxo.

É inútil tentar fugir.

“Impossível” O homem, apavorado ante a gula do Dragão, estendeu todas as redes, iscou todas as armadilhas, preparou todas as tocaias, dissimulou todos os fojos. Por fim, com o aperfeiçoamento dos sistemas, ergueu muralhas económicas onde encurrala as vítimas, limitando o seu caminho entre a estufa venenosa e a rotula sombria. Criou o veludo e a seda, urdiu a moda, envenenou e coloriu os alcooes, criou a vertigem dos veículos, trastejou palácios com divans de serralho, inventou a sedução das joias, das flores ricas, das peles exóticas, colocou tudo isso muito alto e, sagazmente, como velho demónio, inventou uma classe de mulheres às quais deu o privilégio de viver nessas estufas, com a tentação de todos os minutos: — se eu quizer, tudo isso pode ser meu! — As criadas, as modistas, as chapeleiras, as floristas, as manicuras… A todas deu um ambiente de riqueza e só negou uma cousa: a riqueza.

“São as mulheres criadas expressamente para o Dragão; às vezes, nem a morte consegue torcer o seu destino.”

“Cerca-as uma conspirata de todas as horas.”

“A sociedade inteira trabalha para a perdição de muitas mulheres. As meninas mais puras executam uma tarefa marcada. As senhoras de mais respeito, inconcientemente, realizam obra de alcovitice. A lama espirrada pelo.; automóveis e o sorriso aristocrático ofendem, desvairam, enlouquecem.”

Seria preciso transcrever todo o livro, cheio de piedade.

E, para compensar o número relativamente insignificante de mulheres que alcançam o alto mundanismo das hetairas a governar o mundo atra-vés dos banqueiros, senadores, coronéis da política e da indústria — as milhares de prostitutas da calçada, das rotulas se estorcem no paroxismo dos sofrimentos que gangrenam o corpo e amortalham a sensibilidade.

Prostitutas! E por acaso não são também prostituídos todos esses coronéis e todos os moços bonitos e todos os homens que compram o prazer a troco da dor? Por acaso, dentro desta civilização de vampirismo haverá alguém que não se preste, que não tenha responsabilidade na organização social que compra e vende tudo, inclusive o amor, a conciencia e o cérebro?

Quem terá mais culpa: a que vende ou o que compra?

Todos prostituídos, todos os cúmplices do Dragão voraz.

E este livro é escrito em estilo sem asperezas, suave no descrever as torpezas dos civilizados, doce como é sem violência esse sacrifício inaudito de mi-lhões de mulheres expostas á compra nos mercados de escravas de todas as raças, nos balcões ou nos alcouces dos defensores da “honestidade” e da “virtude” burguêsa-capitalista. E é essa moral que a “gente honesta” defende, que os “bons costumes” aí estão para manter, que a escola oficial e o catecismo assim ensinam, para maior glória de Deus e da Igreja, da Patria e da Familia…

São os “cavalheiros sérios e graves que alimentam a prostituição por instinto, certos de que a moral da sua época é como o “broucoíaque” da superstição grega, cadáver que vive a poder do sangue chupado aos vivos.”

Moral que decreta “necessária” a venda do que se convencionou chamar “amor”, esquarteja-dos todos os sonhos mais doces da mulher, que os acariciou certa de poder ocupar o seu lugar ao sói, pendurados os ideaes mais acalentados, nos harpéos dos magarefes da indústria e da política. Não há mais para onde descer a brutalidade selvagem dos que se dizem civilizados.

E é imoral falar-se em substituir esses costumes ferozes por qualquer sistema de vida social mais natural e, consequentemente, mais humano, mais livre.

Todavia, queiram ou não, achem ou não imo-ral, só a liberdade no amor redimirá a mulher do muito que tem feito sofrer á mulher.

Só a liberdade do amor trará ao género huma-no um pouco de paz, de modo a poder transpor a escalada da evolução para uma finalidade social mais digna de quem tão facilmente se julga o “homossapiens”.

Em dois únicos pontos, aliás bem fora da tese social dessa novela encantadora e séria, não posso concordar com o meu nobre e querido Schmidt.

Não diga mais, Schmidt, que os homens da Atlântida deveriam ser como os perversos que não sabem encontrar outra profissão a não ser a de assassinar animais nos matadouros, para os que se nutrem de cadáveres, trazendo as vestes a escorrer sangue, o rosto e as mãos fumegantes e enlameadas na dôr das vítimas indefesas.

A Atlântida é um lindo sonho da civilização do Amor e da Liberdade, perdido na noite dos tempos.

Que nostalgia tive da Atlântida, meu generoso Schmidt, quando li “Les Pacifiques” do nosso grande e querido Han Ryner, culto e genial ao transportar-se á civilização decantada por Platão no “Timeu” e estudada, pelos orientalistas e in-vestigadores, como muitíssimo superior a tudo quanto se possa imaginar hoje, ultrapassando todos os limites da nossa barbaridade de civilizados militaristas, guerreiros de guerras movidas pela cupi-dez e alimentadas a álcool, a eter, a gazes asfixiantes, civilizados canibalescos e vampiros a se enrique-cer á custa dos campos de batalha, civilização de hienas a alimentar-se de cadáveres de homens e de animais.

Não. Se houve uma Atlântida, o pouco de bondade que ilumina o nosso altruísmo, a dedi-cação dos que se sacrificam por um ideal, o nosso anseio de subir até o Eu profundo, certo herdámos desses antepassados gloriosos de Sabedoria e Amor.

Não caluniemos aos que nos legaram a lâmpada espiritual que nos aquece docemente numa esperança querida e que não morre nunca…

Foi aqui mesmo, foi dentro mesmo do nosso ciclo de evolução que maculámos a vida ao criar o dinheiro e ao captar a agua pura das fontes para envenenar o coração, através do salário, e o corpo, no fabrico de drogas, e, para aniquilar a inteligência humana. Fomos nós mesmos que fizemos armas e foram os homens desta civilização que inventaram a polícia para provocar desordens e os “bons costumes” para pôr no “tronco” das rotulas as mulheres “perdidas”, e foram os próprios homens que as “perderam” e as reduziram a escravas de harém.

Respeitemos a Atlântida como um lindo sonho inatingivel.

As “ideias — Forças”

O segundo ponto da minha divergência desse grande escritor brasileiro é o que se refere a Bataille.

O teatro de Bataille é “um raio sem direção” — disse Schmidt.

O conceito de Afonso Schmidt a propósito da magnífica obra de Bataille não se harmoniza com a minha imensa admiração pelo teatro genial desse Artista precursor, criador da beleza, disseminador de energia e serenidade.

Vejamos, por exemplo, “Les Flambeaux”.

Bataille, nesse trabalho nobre, largo, filosófico, sincero, de poderosa envergadura mental, abor-da o problema ético da luta entre os instintos inferiores e as possibilidades latentes dos humanos, o conflito dantesco entre a sensibilidade da matéria e a sensibilidade da intuição, a lendária pendência do homem consigo mesmo, a matéria e a razão sensivel, Caliban e Ariel, batalha permanente entre a ideia e a ação, o embate entre o que somos capa-zes de sonhar nas alturas e a baixeza das realiza-ções mesquinhas a que nos leva a herança dos reinos inferiores.

É a oposição entre os prejuízos, preconceitos, mentiras, convencionalismos sociais e a grandeza ampla dos nossos sonhos de liberdade individual, e as possibilidades heroicas do nosso constante ser — para uma harmonia mais alta.

São as “ideias – forças”, propulsoras dos grandes acontecimentos éticos, as flâmulas inspiradoras dos génios. Ideias independentes de todos os erros e crimes de lesa-humanidade. Ideias que pairam alto, ideias motoras, ideias projetadas dentro de nós mesmos, emanadas de toda parte, em todas as épocas, ideias entidades a nos fazer pairar acima da vulgaridade, num sonho colhido em alturas inco-mensuráveis.

Depois de alcançar tanta luz, o homem resvala, envolvido no fogo-fatuo sedutor do sensua-lismo, apanhado nas malhas resistentes da influen-cia ancestral, enovelado nos erros seculares dos sentimentos coletivos e procede com a mesma vileza e dentro dos mesmos motivos da imbecilidade humana.

De novo o remorso de decer tão baixo e o esforço heroico de subir mais alto.

E Bataille estuda essa luta interior, criando tipos de profunda psicologia, entre cenas de tal no-breza, de tal ternura, de tal sensibilidade, de tal grandeza ética e de, tal torpeza na vulgaridade do instinto de dominismo social — que faz pensar na inutilidade do apelo ao rebanho humano … e na evolução do individuo, na evolução apenas da unidade individual.

É penetrante, grave no seu recolhimento ao estudar o magno problema humano no heroismo de subir, mais e mais, acima dos tormentos inventados pelo constrangimento social na sua faina de decretar costumes emoldurando todas as criaturas no diapasão dos preconceitos e da selvajaria de-gradante.

Bataille nos aponta os estragos, as tormentas, as amarguras, as angústias derivadas do instinto de propriedade que encadeia duas criaturas na gehena da escravidão de si mesmas.

É o problema do amor.

E, principalmente, a ideia de que, através de um beijo, duas criaturas não se podem inutilizar no exclusivismo do instinto de propriedade e nem diminuem na sua conciencia.

O amor e a conciencia pairam mais alto, e o encontro casual pode revelar um minuto de beleza que ninguém deveria renegar, porem, pode não ser amor, e, cada criatura deve ser livre de viver as suas horas, todas as suas emoções.

Ideia defendida corajosamente por Bataille, contra o preconceito da monogamia criminosa que faz com que até os homens de génio se nivelem á bestialidade feroz dos que se batem e se mutilam e se estraçalham em nome do Amor.

Para a sabedoria de Bouguet, o gesto fisico nada representa.

Para o instinto de dominismo, de autoritarismo, de propriedade de Blondel, o gesto fisico é tudo.

Ambos cientistas, ambos investigadores do mais alto problema de humanitarismo.

E ambos descem á vileza de se bater em duelo, esquecendo a sua pura amisade e a colaboração mutua, devido a um gesto fisico, recordando a atitude bestial dos primórdios da evolução humana.

Equilibrar as forças da vida — é o sonho de Bouguet, o seu grito lancinante, apelando para a amizade, para a ternura de Blondel.

Pôr de acordo a vida e o pensamento, que cousa difícil!

Elevar-se acima da mediocridade de todas as pessoas, acima dos prejuizos e da rotina — para pensar nobremente; acima do atavismo selvagem, deixar de ser a besta gregária, para sentir uma individualidade no fundo do sêr independente e livre e esquecer todas as “mentiras vitais” da sociedade para ser apenas o criador de beleza interior, o acu-mulador de riquezas, despertando possibilidades latentes; viver ideias nobres, subir em vez de descer por entre as abjeções e os desvarios do mundo so-cial, chegar ao pé dos abismos fataes das convenções criminosas do mundanismo e virar o rosto para a luz interior — que bela realização!

E a mais idiota das convenções — o sangue reparador da honra, da vida, a mais perversa das convenções sociaes — quantos crimes de iesa-felici-dade humana perpetra a cada instante, em nome do Amor!

É no segundo ato de “Les Flambeaux” que Henry Bataille, na cena VI, resume a ideia da peça, no dialogo entre Hernert e Bouguet.

“(…)de estrela em estrela, todo o pensamento humano… como se, desagregado, porém, jamais perdido, vivesse realmente acima de nós e formasse esse grande nimbo universal que nos arrebata para fins de luz ou de serenidade… Dessa contemplação profunda, veio a paz.”

“Não chorei mais. Desde então encaminhei-me como vós, como tantos outros, para infinitos mais numerosos…

“Não havia mais carne: a minha dor perdia-se no espirito universal! “

“A alma suprema consolou minha alma de homem.”

São as flâmulas, as “Ideias – Forças”, na sua órbita imensa em busca da Harmonia Infinita que é o Amor, bem acima de todos os resíduos deixados pela alma humana na sua escalada para um “devenir” sempre e cada vez mais alto.

Não, o meu caro Schmidt, o teatro de Bataille não é “um raio sem direção”.

Pelo contrário, se o teatro de Bataille viesse substituir “Ra-ta-plan” ou “Ba-ta-clan” dos nossos palcos de pantominas, cretinices e pernas á mostras sob o nome pomposo de “nu artístico” — é que o nosso público estaria á altura do verdadeiro teatro. Mas, Bataille não pôde ser assimilado pelo público que quer rir até as orelhas para não pensar, esse publico que frequenta as “variedades” para tomar aperitivos…

Pelo contrário, todo o admirável trabalho de Bataille é imaginado dentro de um plano extraor-dinariamente concebido, estudado sob os aspetos mais profundamente humanos, que Bataille não faz psicologia barata de cordel ou de costureirínhas, psicologia a Paul Bourget, defensor do passado.

“Les Flambeaux” é uma amostra desse raio atirado em direção bem determinada. Ainda no dia-logo entre os dois sábios amigos, entre Bouguet e Hernert, os dois cérebros e os dois corações que per-correm a escala do amor em sentido inverso, um começando pelo amor fisico, passando ao sentimen-tal e em seguida ao cerebral, e o outro iniciando-se no amor mental, através de um ser superior, a com-panheira das suas investigações, e acabando por descer ao amor sensual já no virar da encosta da vida; no belo e profundo dialogo, poderíamos acompanhar a direção desse raio genial, afirmando que, acima de tudo, acima da própria fatalidade, acima mesmo do Amor, do sofrimento, até acima da vida, no sentido limitado que a vemos — “ha a majestosa liberdade do pensamento”, e, “desde que se está inclinado sobre todas as possibilidades imensas do espirito, vê-se que a ideia precede ao ato. Então, que vem a ser o terror, o amor, a dor? Resíduos, despojos da ali.ia em marcha ou do pen-samento universal…”

Não é o momento oportuno para comentar o sentido profundo desse pequenino trecho de uma grande mentalidade. Mas se os teatros se movimentassem na direção desse raio conciente, se as piateias desta sociedade, em plena decomposição, estivessem á altura desse raio de luz, certo seria um meio, o teatro, de nos afastar da rotina, dos prejuizos seculares fossilizados em nós como os me-nhirs ainda hoje encastoados á terra, onde a pré-historia os enterrou.

Mas, essas duas pequeninas divergências nada teem que vêr com o meu entusiasmo por este livro, que eu desejaria na mão de todas as pessoas.

Que vontade tenho de citar páginas e páginas de “O Dragão e as Virgens”, em que se reflete a dor, a angústia, o grito lancinante das que vão, mudas, tristes, silenciosas, subindo a encosta — para servir de pasto ao Dragão sempre insatisfeito, ao deus hediondo da religião, ao Moloc da moral e dos “bons costumes”.

Este livro é delicado como é delicado o sofrimento das sacrificadas: é um beijo na dor imensa, na dor perfurante de quem se dá em holocausto, sem um protesto, sem violência, conciente ou inconcientemente, talvez sem mesmo saber que a felicidade ou o bem-estar ou a segurança de algumas, ou de milhões de mulheres contra a luta económica — é fruto do martírio inominável das insatisfeitas, das que são devoradas irremediavelmente, pelo Dragão, martírio de animaes de tiro na sua profissão indesejável de nunca receber senão pedradas que a moral atire-lhes, e dar sem tréguas, sem mesmo pretender ouvir a delicadeza do agradecimento.

Quantos tipos de “Pureza”, de alma cândida se arrastam por aí afora, engolindo as lágrimas através do sorriso doce de quem derrama no coração de cada transeunte o perfume macio e leve de uma carícia — sem receber em retribuição nem ao menos o gesto humano de um aperto de mão fra-ternal.

E quanta “Pureza” morre por aí, nos bordéis e nos lupanares…

E quanta Messalina “virtuosíssima”, piedosa e casta, no seio da sacratíssima instituição da familia legal e moraliteista…