Sobre a tentativa de golpe de estado no Brasil: uma apreciação


Que a nossa construção seja como devem ser as nossas propostas organizativas, que “não se desmanchem no contato com a realidade”. 

  1. Antecedentes

Em 11 de maio de 1938 os integralistas, versão tupiniquim do nazifascismo, empreenderam um “assalto ao poder”. A ala armada da Ação Integralista Brasileira (AIB) pretendia ensejar a deposição do então presidente Getúlio Vargas.  Os motivos eram muitos, mas destacava-se sobretudo o fato de ter o chefe do Executivo editado o decreto-lei nº 37, de 2 de Dezembro de 1937, o qual dispunha “sobre os partidos políticos” e, no seu artigo primeiro, anunciava: “Ficam dissolvidos, nesta data, todos os partidos políticos”. Os integralistas, que tinham sido importantes aliados de Vargas no contexto do golpe político do Estado Novo, no ano anterior, ressentiam-se da indiferença do novo governo em relação ao programa da AIB, do seu isolamento e até mesmo de certa marginalização política. Com o decreto de 1937 a organização política dos integralistas ficava proscrita, frustrando assim o projeto da AIB de se tornar, ela própria, um partido único para governar o Brasil.

O “putsch” integralista fracassou em todas as suas pretensões, o cerco ao Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro, então capital da República, cobriu-se de vergonha ao oportunizar cenas das mais degradantes e vexatórias. Uma página do anedotário político brasileiro, uma vez que os integralistas se esvaíram pelas ruas vizinhas ao prédio, em desabalada correria, ao som do primeiro tiro da guarda palaciana. Os oficiais da Marinha que na ação se envolveram ou dela participaram indiretamente foram punidos e cerca de 1.500 pessoas terminariam presas. O líder maior integralista, Plínio Salgado, não por mero acaso, exilou-se em Portugal.

A aliança entre Vargas e os integralistas por ocasião da criação do Estado Novo tinha como cimento o anticomunismo, bastante disseminado, aliás, pelas forças políticas conservadoras. As palavras de ordem “Deus, Pátria e Família”, mais comumente utilizadas pelos integralistas, em conexão direta com o fenômeno europeu, não eram pouco comuns nos discursos da generalidade das lideranças mais autoritárias do espectro político nacional. Uma combinação que, a despeito das dissimulações em contrário, foi fundamental para a instituição de uma cultura inequivocamente reacionária e antidemocrática.

Depois de 1945, com o fim do Estado Novo e um curto período “democrático” no decorrer do qual o próprio Getúlio Vargas retornaria respaldado pelas urnas eleitorais (1951-1954), o Brasil volta a mergulhar em uma ditadura. O movimento civil-militar-empresarial inaugurado em Abril de 1964 iria durar formalmente até 1985, com episódios dos mais tristes para a história do país, entre os quais destacam-se a tortura por delito de opinião, as prisões arbitrárias, assassinatos de líderes populares, extermínio de povos indígenas e repressão dura e cruel aos grupos sociais de periferia.

Como reação a tudo isso, no final da década de 1970, já é possível identificar os primeiros sinais do que viria a ser o “Novo Sindicalismo”, com greves importantes a partir de 1978 que se estenderão pelo início da década seguinte até a fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983. Vale destacar que para a criação da CUT não foram poucas as correlações históricas com o período do “Sindicalismo Livre”, do sindicalismo revolucionário, chamado de forma geral de anarcossindicalismo. O movimento camponês começa também a dar demonstrações de algum vigor em pequenas iniciativas que serão muito bem aproveitadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), fundado formalmente em 1984, portanto, dentro dos marcos cronológicos da ditadura.

A transição democrática será marcada pela conciliação, mediada por uma “Lei de Anistia”, de Agosto de 1979, que isentava de processo pessoas “que cometeram crimes políticos” entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Anistiava igualmente os que haviam torturado, assassinado e perseguido militantes políticos no mesmo período. Um fato que permitiu, na lógica da impunidade, que os agentes da repressão ganhassem status político análogo ao dos resistentes à ditadura. Um reconhecimento que, na prática, negava cabalmente o espírito que deixava entrever o regime de ter a anistia o propósito de devolver o Brasil ao “estado democrático de direito”, ainda que de forma “lenta, segura e gradual”.

O período “democrático” cuja primeira grande afirmação foi a Constituição de 1988 seguirá marcado pela conciliação, pela anuência das forças da esquerda partidária em relação ao pacto de conciliação, pela convivência, ainda que com atritos, entre os polos que se apresentavam antagônicos durante o regime de exceção. Nesse contexto o bipartidarismo vigente durante a ditadura, transforma-se em pluripartidarismo, possibilitando o aparecimento de legendas políticas dos mais diversos matizes. É nesse contexto que o Partido dos Trabalhadores (PT) logra aglutinar parte significativa da esquerda brasileira.

Da primeira disputa eleitoral direta para presidente, em 1989, até a eleição de Jair Messias Bolsonaro, em 2018, as eleições tornavam evidente a tensão entre os projetos liberal e social-democrata, ambos com muita presença nos resultados, com pouca diferença entre os percentuais de votos. É possível afirmar que havia um certo equilíbrio e mesmo uma complementariedade nos projetos uma vez que, em muitos aspectos, as sucessões e alternâncias de poder apresentavam pouquíssimas descontinuidades. O arranjo político, dessa forma, produzia poucos “solavancos” na macropolítica e mesmo na dinâmica dos mercados. Um fato que tornava possível indagar sobre a real existência de matizes ideológicos entre os partidos de direita, centro e esquerda. Isso em se considerando o jogo democrático institucional.

2. A eleição de Bolsonaro em 2018: um balanço

A eleição de Bolsonaro em 2018, identificado surpreendentemente como uma espécie de outsider da política, ainda que com quase três décadas de mandatos parlamentares, representou uma efetiva descontinuidade. Eleito na esteira de uma campanha midiática contra a corrupção, aproveitando-se da prisão do virtual candidato do PT, Luís Inácio Lula da Silva, a vitória de Bolsonaro, na segunda volta, contra o então candidato Fernando Haddad (PT), inaugura uma fase atípica na política brasileira. Pela primeira vez uma candidatura fortemente alicerçada nos mais variados preconceitos expunha em discursos, gestos e promessas, a misoginia, o racismo, a xenofobia e o desprezo pelas questões ambientais e dos povos originários. Ao que tudo indicava, o preço pela conciliação da lei de 1979 era cobrado agora em coeficientes eleitorais. O horror chegava ao poder pelas regras “democráticas”.

O balanço geral dos quatro anos de governo da extrema-direita no Brasil não permite esconder o passivo social de incalculável proporção, bem como os crimes ecológicos, os retrocessos em políticas de inclusão, as verbas desviadas para a corrupção e, mais que tudo, a desastrosa gestão sanitária da pandemia da Covid-19 que ceifou cerca de 700 mil vidas. Um balanço que não pode deixar de fora a política deliberada de veiculação de falsas notícias (fake news) pelos próprios agentes públicos e nas redes sociais, em um processo de desinformação que não deixou incólume até mesmo os paradigmas científicos mais elementares.

Com a proximidade do processo eleitoral em 2022, a atividade de desinformação nas redes ampliou-se ainda mais e com ela os ataques frontais às instituições de Estado, principalmente o Supremo Tribunal Federal. As insinuações sobre fraude eleitoral e a conduta irregular dos agentes de apuração multiplicaram-se possibilitando um estado de insegurança institucional para o qual os sucessivos pronunciamentos do presidente muito colaborou. A exemplo do que se havia se passado nos EUA, em janeiro de 2021, quando do questionamento dos resultados das urnas pelo presidente derrotado, Donald Trump, também no Brasil, Bolsonaro já levantava suspeitas sobre a lisura do processo.

Nesse sentido, o nexo que conecta a gestão Bolsonaro aos “bolsões radicais” de extrema-direita – já existentes durante a ditadura de 64, responsáveis diretos pelas muitas atrocidades -, no plano internacional pode ser localizado no movimento de ascensão de forças reacionárias globalmente verificável. No que corresponde aos “fascistas” brasileiros, mais claramente depois da morte de Olavo de Carvalho (2022), estes seriam mais diretamente subordinados a Steve Bannon, o ideólogo de Trump.

Com a derrota de Bolsonaro por uma margem apertada de cerca de 2 milhões de votos, as mobilizações para impedir a posse de Lula passam a animar os grupos neofascistas que cresceram substancialmente nos últimos quatro anos. Financiados pelo capital especulativo, latifundiários em geral, empresários do agronegócio, com o apoio de setores numericamente significativos das forças armadas e polícias militares nos estados da federação, milhares de apoiadores levantaram acampamentos nas portas de quartéis em várias partes do país. O objetivo era pressionar as três forças da República: Marinha, Aeronáutica e Exército, com destaque para esta última, a realizarem um golpe de Estado.

No dia 12 de dezembro de 2022, por ocasião da diplomação do presidente eleito, os contingentes fiéis ao governo Bolsonaro, muitos dos quais estavam acampados na frente do QG do Exército desde o início de novembro, protagonizaram cenas de extrema violência nas ruas de Brasília. Os atos foram tolerados pela polícia do Distrito Federal, ainda que o patrimônio público tenha sido violado e carros incendiados. O governador do DF, aliado de Bolsonaro, deu ordens para que ninguém fosse preso. Tal fato alimentou de esperanças as hostes da extrema-direita que já vinham disseminando, desde o resultado oficial das eleições, após o dia 31 de outubro, a tese de que o presidente eleito não iria assumir as funções em 1 de janeiro, supostamente impedido por um dispositivo militar.

Depois do dia 12 de dezembro foi possível observar nos acampamentos nas portas dos quarteis e em iniciativas que pretendiam interromper vias públicas, como as verificadas em várias partes do país após os resultados finais da segunda volta, certa oxigenação do ímpeto golpista. No dia 24 de Dezembro, uma bomba, com potencial de provocar sérios danos, é encontrada em um caminhão de combustível nas imediações do aeroporto da capital. O principal responsável é um ativista bolsonarista, com histórico de participação em reuniões patrocinadas pelo governo e cadastrado como “Colecionador, Atirador e Caçador” (CACs), dono portanto de um nada modesto arsenal de armas. Fatos para os quais a conivência das polícias e das forças armadas desempenha papel central.

3. Os acontecimentos recentes

Entre os dias 7 e 8 de janeiro, após a posse formal do novo presidente, centenas de ônibus chegam a Brasília. Deles desembarcam manifestantes que haviam obedecido ao chamado das redes “sociais” bolsonaristas com o propósito de derrubar o governo ocupando os prédios dos três poderes da República. A ação terminaria por contar com a já costumeira complacência das polícias e das forças armadas e mesmo, com não poucas evidências, o apoio nada velado destas. O que se verifica na sequência é uma depredação dos prédios invadidos que não pouparia nem mesmo as obras de arte expostas.

Depois de algumas poucas horas de perplexidade, o ministro da Justiça do novo governo consegue mobilizar algum contingente policial, que passa a prender os invasores em ação progressiva que, já no seu final, conta cerca de 1.800 detidos. Nesse mesmo dia é decretada a intervenção federal na segurança do Distrito Federal e, no dia seguinte, o governador é afastado por 90 dias. Em uma investigação preliminar já é possível afirmar que colaboraram materialmente para o evento, empresários dos mais diversos ramos, inclusive do agronegócio, fazendeiros identificados com os crimes ambientais e outros que estão aparecendo no curso das investigações. O apoio de parte da polícia, das forças armadas e de políticos de extrema-direita é hoje mais que reconhecido pelos órgãos responsáveis pela identificação dos responsáveis.

Em comum com o “putsch” integralista de maio de 1938, a recente tentativa de “assalto ao poder” tem o número de detenções (número aproximado), a consigna “Deus, Pátria e Família”, o extremismo de direita, o apoio de setores reacionários da sociedade civil brasileira, o apoio de parte das foças armadas e, principalmente, o efetivo avanço no plano internacional de organizações de extrema-direita que, em alguns casos, lograram ocupar postos políticos de destaque. As diferenças, contudo, são também importantes uma vez que o liberalismo hoje, no atual estágio do capitalismo, não se constitui exatamente como era há quase 80 ou 90 anos atrás. O movimento (neo) fascista brasileiro também não conseguiu constituir um partido, ainda que tenha tentado (o Partido Social Liberal – PSL/ União Brasil – UNIÃO) e continue tentando (o Partido Liberal – PL), mas sem que esses esforços tenham conseguido atingir a configuração clássica do programa político tipicamente totalitário. As milicias (neo) fascistas não se disseminaram nacionalmente, ainda que uma clara aposta nessa direção tenha sido feita pelo governo Bolsonaro no que concerne ao crescimento dos grupos de CACs, estes virtuais facilitadores da circulação de armamentos nos bolsões simpáticos ao governo.

4. Sobre o que cabe aos libertários nessa conjuntura

Depois do ciclo de manifestações iniciado em junho de 2013, principalmente no que se refere ao conjunto de reivindicações do campo autonomista, o governo do PT publicou em Março de 2016 a “Lei Antiterrorismo”, nome pelo qual é mais conhecida lei ordinária nº 13.260/2016. A nova lei que visava “estabelecer parâmetros legais para combater e interditar o terrorismo” terminava por criminalizar os movimentos sociais e populares, justamente aqueles que, em certa medida, eram os virtuais beneficiados pelas pautas autonomistas das “Jornadas de Junho”. Não fica difícil sustentar ainda que tal procedimento, se por uma parte, mostrava-se adequado para colocar sob suspeição o campo revolucionário como um todo, por outra, revelou-se bastante útil para o crescimento das forças reacionárias.

Nesse sentido, a extrema-direita cresceria à sombra da lei, auxiliada por uma pauta conservadora de costumes, pelas campanhas de combate à corrupção, à moda “operação mãos limpas”, cuja principal expressão foi a “Operação Lava Jato”, iniciada em março de 2014 e mesmo pelo sucesso do “golpe parlamentar” que depôs a presidente Dilma Rousseff, em Abril de 2016. Aspectos que podem explicar parte do movimento ultraconservador que levaria Bolsonaro à vitória nas eleições de 2018.    

No nosso juízo, o “putsch” de janeiro de 2023 torna ainda mais urgente a definição da posição dos libertários diante da grave conjuntura. Um cenário que sugere a polarização entre um campo efetivamente reacionário e outro liberal no qual, como evidenciam as alianças da frente que elegeu Lula, estão também notórios conservadores. Um confronto apresentado, até por parte importante da grande mídia, na lógica de oposição entre a civilização e a barbárie. Um clima ideológico do qual é extremamente difícil escapar, salvo com posições claras, firmes e objetivas.

Já se iniciam as chamadas para a unidade em defesa da democracia representativa burguesa, sintetizada na defesa do “estado de direito”. As esquerdas se preparam para somarem-se às passeatas em defesa da ordem constitucional. Sem muita opção, vão defender o programa que, em outros tempos, estariam nas ruas combatendo. Eis aí a grande contradição que acabamos por verificar em todas as oportunidades em que falham os arranjos da política institucional.

Sobre onde devem estar os libertários, não há dúvida que no campo popular e social, dentro ou fora das manifestações, participando delas ou não, mas inegociavelmente ao lado dos explorados. Tecendo com estes os necessários pactos, programas ou simplesmente ações conjuntas o mais possível articuladas. Assumindo tarefas, ensejando o diálogo e, pincipalmente, deixando claro qual é a nossa tradição e os objetivos que nos colocam invariavelmente em relação solidária com as periferias e favelas.

Que ninguém se engane, a conjuntura de crise institucional é a oportunidade renovada do aprofundamento da ação direta, principalmente no campo social. Um novo arranjo político não nos garante nada, absolutamente nada que não tenhamos condições de arrancar. Se a efetivação de um golpe de estado bem-sucedido nos parece ameaçadora, o grande risco da vitória do governo eleito em 2022 é a possibilidade do sequestro do programa popular, da sua apropriação e o subsequente rebaixamento das suas pautas sociais mais ambiciosas. Dessa forma, a única maneira de colaborar politicamente com a resistência ao golpe de estado é reforçando o método libertário através do qual se encontrará na determinação popular o único e efetivo antídoto contra todas as crises políticas das instituições democráticas.

Em suma, se queremos ajudar de forma consistente nessa luta, comecemos então por sermos nós mesmos, com identidade e caráter próprios deixando claro para os demais setores que nosso compromisso é antes com a emancipação social e não com a governabilidade. Que a nossa construção seja como devem ser as nossas propostas organizativas, que “não se desmanchem no contato com a realidade”. 

Instituto de Estudos Libertários

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