Os professores e a Res Publica


A educação constituiu-se, desde há muito tempo, como um problema em Portugal. Tanto pela falta dela, como pelo ensino que era dado aos que tinham meios de a ela aceder. Assim pensava Oliveira Martins (1845-1894) que nunca chegou a concluir o Curso dos Liceus. A Revolução de Setembro de 1836 quis instituir o ensino obrigatório, mas a pobreza geral obrigava as famílias a mandar as crianças trabalhar, retirando-os do caminho para a escola. O sistema instituído ajudava nesse destino, expulsando as crianças por falta de assiduidade, pela frequente pancada e humilhação disciplinares, pela inutilidade do muito que se exigia aprender. A par do ensino público, deficientíssimo em instalações, materiais e na formação de docentes, havia o ensino privado, donde se destacam algumas escolas preferidas pelos filhos das classes médias. Nos finais do século XIX, havia quem se indignasse por ver o Estado português, muito endividado, gastar tanto ou mais com a Casa Real do que o ensino primário. Isto quando o país apresentava os piores indicadores de Civilização, só ultrapassados pelo analfabetismo existente no vastíssimo Império Russo. A situação social do professorado português era deplorável.

O projecto republicano que foi germinando na sociedade portuguesa que quis valorizar o ensino nas suas múltiplas vertentes (universitário, técnico, profissional) e níveis de aprendizagem como meio de regeneração e de construção da cidadania. O ensino laico, racional e humanista deveria constituir a base da paideia republicana, da formação do homem livre – ideal partilhado igualmente por socialistas e anarquistas.  A República, para o ser, necessitava de professores à altura da nobre missão de formar cidadãos livres. A valorização do ensino público, ligado a um projecto de regeneração dos portugueses, foi assim uma das marcas de um regime que vigorou durante 15 anos apenas, período atravessado por uma guerra mundial, com as suas consequências económicas e sociais devastadoras. A valorização do ensino público exigia uma formação qualitativamente diferente,  a valorização da profissão docente nos diferentes graus de ensino, a qual passaria pelo salário digno e pela atribuição de habitação ao professor, de forma a torna-lo independente, como aos magistrados, de influências externas. O modelo não era original. O professor com a sua maison d’école constituía em França um ícone da III Republica, após a aprovação as leis escolares de Jules Ferry. A República conheceu em Portugal a praga do “adesivismo” e do conservadorismo, mostrou-se sempre pronto a aliar-se às forças mais reaccionárias da Igreja e da sociedade, as que realmente amavam o povo português analfabeto, obediente, embrutecido pelo trabalho, pela miséria, pelo alcoolismo e temente a Deus e ao Estado. A República teve de lidar, dentro de si, com essa visão oligárquica do ensino que lhe era anterior: a de que os portugueses não deveriam aceder todos a um ensino público gratuito que permitisse o aperfeiçoamento dos homens pela educação racional, humanista, técnica e científica. Apesar disso, os salários dos professores dos ensinos básico e secundário foram os que menos sofreram com a desvalorização monetária gerada durante a guerra e com a crise após a Primeira Guerra Mundial. Entre 1914 e 1926, ao contrário do que sucedeu com os salários dos quadros superiores do funcionalismo público e das forças armadas, os salários dos professores depreciaram-se menos.

Vem isto a propósito da recente luta dos professores pela dignificação do ensino público e do estatuto do professor. Dir-se-á que, volvido um século, muita coisa mudou no ensino, a começar pelo nível de rendimentos da generalidade da população e pela subtracção das crianças ao trabalho por conta de outrem, que muito contribuiu para a extensão da escolarização obrigatória. Hoje são 12 anos de escolaridade obrigatória. Mas persiste a visão de que o ensino público dito “de qualidade”, propiciador de “igualdade de oportunidades” graças à acção assistencial do Estado, é uma ameaça às posições reservadas aos filhos dos ricos. E que, portanto, o acesso a essa qualidade tem de ser paga e bem.

A visão generosa que vingou durante o período revolucionário (pós-Abril de ’74) e que se arrastou nos anos seguintes, e as conquistas que foram alcançadas no exercício da profissão, a começar pela autonomia pedagógica das escolas, foram sendo demolidas gradualmente por uma visão autoritária e centralista pautada crescentemente por valores gestionários neoliberais. Os problemas criados nas últimas décadas têm vindo a acumular-se sem outra solução à vista que não seja a degradação da qualidade de ensino e a degradação da profissão. A lista é tão extensa que o corrente movimento de acção sindical surpreende apenas por ser tão tardio.

Um deles tem sido a tentativa por parte dos governantes de destruir um dos poucos sistemas de recrutamento existentes neste país à prova de compadrios, cunhas, amiguismo e corrupção. Neste contexto, a ideia de transferir o recrutamento de professores para o “poder local”, tal como já acontece com a gestão de equipamentos escolares, funcionários e trabalhadores auxiliares, é vista por muitos como uma porta aberta para todas as arbitrariedades, sejam elas dos directores escolares e outros iluminati indigitados, sujeitos ainda a influências espúrias, ao comando dos chefes de posto, digo, das redes das clientelas municipais. O governo já deu o dito por não dito, mas a vontade política persiste. Trata-se, pois, de uma classe que se tem mostrado sensível à “qualidade do recrutamento”.

Porém, a chave das actuais tensões tem residido no facto da profissão docente estar voltada para o futuro. (Não me refiro ao futuro dos jovens que, à saída do sistema escolar, encontram trabalho precário mal remunerado, desemprego, instabilidade e acabam por emigrar em busca duma vida. Como sucede desde os anos ’80…, como desde os anos ’60…, … desde os anos ’20, enfim, como desde meados do século XIX. Hoje, o país envelhece e definha.)

A profissão é voltada para o futuro porque, quando o professor entra na profissão, sabe que será mal pago e terá de andar com a casa às costas até conseguir alguma estabilidade e ver o seu salário aumentar a níveis que lhe permite ter uma vida. Nos anos ’80 dizia-se “faça-se professor eventual e conheça Portugal”. A nomenclatura depois mudou: o professor eventual passou a “professor provisório”. No essencial, exigia-se que o professor fosse uma espécie de missionário num país de baixa escolarização e em avançado processo de desruralização. A avalanche de professores que se abateu sob a província foi uma mina para os “aluga-quartos” – “depois da meia noite, na rua só cães e professores”, dizia-se em muitas terras do Alentejo. No início da carreira, sujeito a uma condição errante, o jovem professor tem, pelo menos, de suportar os custos de um novo quarto ou casa, acrescidas as despesas de transporte individual. Ou seja, para trabalhar, no início da carreira o professor paga mais impostos (a começar pelo consumo de combustível) e tem mais despesas, sem qualquer compensação por parte da entidade patronal – o Estado português. Esse mesmo Estado que imagina deduções e subsídios para tudo-e-mais-alguma-coisa nem sequer contempla a possibilidade de dedução de despesas no cálculo do rendimento colectável do professor deslocado ou atribuiu um subsídio como compensação. O salário que fica, depois deduzidos os impostos e as despesas compulsivas para trabalhar ‘longe de casa’, é muitas vezes ridículo, apenas suportável porque há a perspectiva de, no futuro, ganhar estabilidade, o que se traduz em substancial redução de custos. Adquirir um lugar de efectivo é assim o primeiro grande obstáculo a vencer, com efeitos imediatos na qualidade de vida. Depois disso, trabalha-se na mira de progredir na carreira. Pelo caminho, surgiram recentemente outros obstáculos: como a situação do professor que se vê obrigado a circular entre escolas para poder ter “horário completo”, tendo ele de assumir também esses custos. Essa condição precária, que parecia provisória, passou depois a arrastar-se. Pois o diabo é quando a situação de instabilidade se vai arrastando anos a fio, as carreiras são congeladas e o tempo de serviço deixa de ser contabilizado para a progressão na carreira. O diabo é ainda quando os salários não aumentam durante mais de uma década enquanto o preço da gasolina e dos alugueres de casas aumentam por toda a parte no país turístico e à venda para os estrangeiros comprarem.  

Manifestação de Professores diante da Assembleia da República, 18 de Dezembro de 2022 (fonte: S.TO.P)

A verdade é que a profissão docente está pulverizada numa miríade de situações distintas, determinadas pelos níveis de ensino, pelos grupos disciplinares e situação de cada docente na carreira. Este é um universo que resvala facilmente para soluções demagógicas e condições kafkianas. Quando os professores se queixavam do excesso de alunos por turma, por exemplo, havia nas disciplinas práticas dois professores por turma, tendo eles menos trabalho e cerca de metade da carga horária do que se trabalhassem numa escola profissional. As diferenças de remuneração ao longo da carreira são bastante significativas. A progressão era acompanhada por significativas reduções de carga horária e por aumentos salariais. De um período em que este sistema de ensino explorou descaradamente uma massa enorme de jovens missionários da educação, enquanto mantinha “os efectivos”, “do quadro” (em linguagem burocrática) numa posição relativamente privilegiada, passámos para um período em que aqueles docentes, agora já envelhecidos, enfrentam um Estado sem capacidade financeira aparente para lhes dar o que consideram ser um direito legítimo: a contagem do “tempo de serviço” (o desbloqueamento na progressão das carreiras) e o fim da instabilidade. Colocados a meio da carreira, desgastados, não surpreende que tenham já capacidade para mudar de profissão num país sem grandes oportunidades para o emprego qualificado.

Percentagem de frequência dos alunos no ensino secundário em percentagem da população em idade normal de frequência nesse ciclo. Fontes: DGEEC/ME-MCTES | INE, PORDATA Última actualização: 2022-09-06

Outras mudanças de fundo na educação merecem ser assinaladas neste contexto. De um sistema estupidamente malthusiano, vocacionado para impedir as progressões dos alunos, a direita neoliberal descobriu demagogicamente a vantagem de promover o “sucesso educativo”, alinhando numa escola “inclusiva”. Para tal criou um sistema que consiste em dar mais trabalho burocrático aos professores, enchendo-os com tarefas à margem da docência, de forma a desincentivar as “retenções” de alunos. A ideologia do “sucesso educativo” é uma profecia que se auto-realiza centrando o ensino na avaliação dos resultados e não no processo, treinando os alunos para os exames primeiro, baixando o nível de exigência dos exames depois, e, finalmente, dando notas altas. Tudo para apaziguar os espíritos que têm na mira fazê-los entrar na universidade e apresentar bons indicadores em fóruns internacionais. Ao fim de alguns anos nesta escola-depósito “inclusiva”, voltada para o “sucesso educativo” e extraordinariamente burocratizada, não surpreende que os “agentes de ensino”, permanentemente pressionados e frustrados, rebentem de cansaço psicológico (hoje chama-se burn outs) – uma verdadeira doença profissional que se tornou endémica. Ora, aos professores que vivem o mal-estar no início e a meio da carreira, vêm juntar-se os mais velhos que têm visto aumentar sucessivamente a idade da reforma.

Manifestação de Professores diante da Assembleia da República, 18 de Dezembro de 2022 (fonte: S.TO.P)

Neste momento, parece que está tudo em causa na luta dos professores: desde o sistema de avaliação instituído onde o mérito pedagógico deu lugar às redes de proximidade com os poderes instituídos, até a questões mais “estruturais” como a do Estatuto da Carreira Docente que tem imposto mais horas de trabalho efectivo e mais escalões de progressão. Numa altura em que se recrutam já licenciados e não licenciados para o ensino (notório em algumas disciplinas como informática), a profissão docente mostra-se desgastada. Mas conseguiu ultrapassar as particularidades de cada situação profissional através do movimento sindical que tem vindo a ser gerado à margem dos poderes instituídos.  Os professores sabem que ao lutar pela dignidade da sua carreira, estão a lutar pela escola pública. O que muitos pais talvez não compreendam, prejudicados por não terem a quem confiar os filhos, é que eles estão a lutar também por uma certa ideia de República.

P.G.

Jan. 2023