Comunicado Associação Renovar a Mouraria sobre o incêndio deflagrado na Rua do Terreirinho


Morreram 2 pessoas e 14 ficaram feridas em incêndio na Mouraria.

O incêndio na Mouraria que expôs a falta de direitos de pessoas imigrantes em Portugal

A Associação Renovar a Mouraria vem lamentar as mortes e feridos ocorridos no incêndio do passado sábado dia 4, no nosso bairro, assim como o pânico vivido por toda a comunidade envolvente. Destacamos desde já que o impacto do incêndio foi minimizado, em primeira instância, pelo louvável apoio da vizinhança que prontamente auxiliou as vítimas, sendo exemplo da comunidade viva que ainda habita o bairro e que demonstra a importância das redes de vizinhança ativas: a reflexão sobre o esvaziamento de habitantes nos centros das cidades para dar lugar a alojamentos temporários para turistas é desde já crucial para uma análise holística desta situação .

Muitas vezes veladas por medo, esta falta de condições de habitação era silenciosamente conhecida pela generalidade do bairro, sem que soubéssemos como agir para a mudar, sem que obtivéssemos testemunhos abertos sobre ela. Mas já não é possível ignorar. Apesar da complexidade dos problemas sociais que aqui se cruzam, algo tem de ser feito. Quando a crise na habitação mata, algo tem de ser feito. Quando a precarização do trabalho mata, algo tem de ser feito. Quando a burocratização kafkiana a que um imigrante é exposto para ter direitos perpetua as múltiplas desigualdades experienciadas, algo tem de ser feito.

Este incêndio foi, assim, a face dramaticamente visível dos complexos problemas que atualmente habitam Lisboa e a Mouraria, bairro onde vivem mais de 50 nacionalidades diferentes e onde se falam mais de 40 línguas , e cujas populações migrantes experienciam camadas extra de injustiça social. Se o acesso a habitação e trabalho dignos são direitos em causa para todas e todos, há pessoas migrantes que têm uma dificuldade redobrada nesse acesso, já que a migração implica um processo de reintegração num novo sistema social no país de destino. A mais se junta o direito à saúde e a simplificação dos processos de regularização, para garantir os efetivos direitos das pessoas migrantes no nosso país e que para ele tanto contribuem.

Enquadrar o que aconteceu e reivindicar políticas públicas

Entendemos que vários dos fluxos migratórios que têm ocorrido não são geridos no país de destino, pelo Estado, com um sentido de verdadeira reintegração social – responsável e que preserve os direitos das pessoas migrantes, defendida e concretizada por políticas públicas, mas antes operacionalizam à margem da lei uma instrumentalização das pessoas migrantes como mera mão de obra conveniente ao mercado laboral. Assim, está em causa um modelo económico que se serve destes fluxos migratórios colocando o lucro acima do bem-estar das pessoas, abrindo margem para diversas situações de precariedade e exploração a que assistimos, seja na habitação, seja no trabalho, no acesso a serviços públicos. E é esse mesmo sistema económico que permitiu a financeirização da moradia nos últimos anos, transformando-a em ativo financeiro no lugar de ser um direito humano e conduzindo-nos à atual crise na habitação, à qual uma parte das populações migrantes está ainda mais exposta. Isto é, as condições de extrema precariedade e injustiça social que aconteceram em Odemira, no território da Mouraria e noutros, estão unidos por um mesmo fio condutor e devem ser encarados com uma perspetiva sistémica.

Se somos considerados um dos países da Europa com melhores políticas de acolhimento de pessoas migrantes, é justo questionar que papel efetivo tem desempenhado o Estado Social na garantia dos direitos dos seus direitos à habitação e trabalho condignos. Neste sentido, alertamos para a existência do Plano de Habitação para Pessoas Migrantes em Situação Vulnerável. É que fiscalizar sem uma solução não protege as pessoas. Como afirmou Jorge Malheiro, é necessário implementar respostas efetivas de acesso à habitação para migrantes, caso contrário, ao querer combater a sua atual situação de extrema precariedade habitacional, estaremos a promover mais desalojamentos. Como tal, estamos a tentar obter informação sobre a operacionalização deste urgente Plano de Habitação.

Há muito a fazer pela Mouraria e por Lisboa: vamos precisar de todas e todos

É necessária uma vigilância permanente do território se queremos contribuir para o seu desenvolvimento local. Enquanto Renovar a Mouraria, encontramo-nos a desenhar um plano de intervenção que visa quatro áreas. Desde logo, reforçar a nossa pressão sobre os poderes políticos responsáveis pelas diferentes áreas que aqui se cruzam. Por outro lado, continuar a capacitar pessoas migrantes na reivindicação dos seus direitos e a facilitar o seu acesso aos serviços públicos, nomeadamente através do CLAIM – Centro Local de Apoio à Inclusão de Migrantes da Mouraria, pertencente à rede nacional CNAIM e que na Renovar a Mouraria opera. Aprofundaremos, ainda, a sensibilização do público em geral através de campanhas de comunicação e momentos de debate. E criaremos oportunidades de geração de conhecimento e desenvolvimento de soluções colocando em cooperação organizações do Terceiro Setor, investigadores e profissionais especializados nas áreas envolvidas e atores políticos.

Acreditamos que episódios lamentáveis como o que sucedeu devem encaminhar as nossas lutas e que devemos fazer da indignação e do sentimento de injustiça matéria para debater mais o bairro e transformá-lo de forma mais efetiva, viva e cooperativa. É com este intuito que promovemos neste território o projeto Residência Secundária, que em abril vão cohabitar um/a político/a eleito/a, um/a habitante do bairro e um/a artista numa residência durante uma semana, numa casa na Rua do Benformoso, a trabalhar sobre apropriação, uso e abuso do espaço público: as verdades visíveis e invisíveis da Mouraria. O objetivo, além da produção de uma obra artística de intervenção no espaço público e da elaboração de um artigo científico, é a vivência imersiva do território por um/a político/a eleito/a, que consequentemente se pretende que resulte na melhoria concreta de políticas públicas nas diversas áreas acima mencionadas.

O projeto Mouraria Participa dará continuidade a encontros de vizinho/as iniciados pelo Residência Secundária, sendo mais uma oportunidade de debate dos problemas na base da gravidade deste incêndio destinado não só a moradores do bairro, mas também a atores políticos e especialistas e a cuja participação, de residentes ou não na Mouraria, apelamos.

Mais afirmamos que perante a Mouraria de hoje, extensamente mais complexa e onde verificamos um recuo nos direitos dos seus habitantes (de pessoas migrantes e não migrantes), o Aniversário de 15 anos que assinalamos em março deste ano, será, mais que um momento de celebração, um momento de luta redobrada, com programação em concordância.

Para informação mais detalhada, está disponível no nosso site a Análise Situacional das comunidades migrantes da Mouraria, que apresentámos publicamente em janeiro de 2023 e que explora, entre outras áreas, condições de habitação, assim como a nossa Newsletter, que mensalmente reflete mais aprofundadamente sobre os temas que atravessam a nossa intervenção no bairro.

Fotografia via
Jornal Público

Associação Renovar a Mouraria

7 de fevereiro de 2023

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