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(Um resumo do que temos lido na Livraria aberta, a tempo das seis semanas de conversas de-segunda-às-seis que recomeçam a 20 de março. Vemo-nos segunda.)

1. No primeiro grupo do verão passado, lemos textos portugueses de 1875-1926:

de ficção
, A.J. Silva Pinto («O berloque vermelho» em Contos fantásticos, 1875)
, Arsénio de Chatenay (Os jogos lésbios ou Os amores de Joaninha, 1877)
, A.J. Duarte Júnior (Henriqueta ou Uma heroína do século XIX: romance original, 1877)
, Eça de Queirós (O primo Bazílio: episódio doméstico, 1878)
, Abel Botelho (O Barão de Lavos, 1891)
, Fialho d’Almeida («O cancro» em O país das uvas, 1893)
, Alfredo Gallis (Sáficas, 1902)
, António de Albuquerque (O Marquês da Bacalhoa, 1908)
, Visconde de Vila-Moura (Nova Safo: tragédia estranha, 1912)
, Mário de Sá-Carneiro («O homem dos sonhos», 1913);

de não-ficção
, B.A.S. Costa Freire (Os degenerados, 1886)
, António Egas-Moniz («Homossexualidade» em A vida sexual, 1901-02);

de poesia
, Guerra Junqueiro (A Torre de Babel ou A Porra do Soriano, 1882)
, Eugénio de Castro («Hermaphrodita» em Salomé e Outros poemas, 1896)
, Álvaro de Campos (Fernando Pessoa, «Ode marítima» de 1915)
, António Botto (Canções, 1922; Curiosidades estéticas, 1924)
, Judith Teixeira (Decadência, 1923; Nua: poemas de Bizâncio, 1926).

2. É sempre estranhamente fascinante quão, de igual modo, próximos e distantes podemos estar de certas representações com cem, cento e cinquenta anos. Mudámos imenso, não mudámos nada, é sempre mais uma questão de perspectiva do que de facto. Na literatura, homens arrancam o coração a amigos porque a violência é a sua língua (é preciso destruir o outro para lhe saber o sabor) e freiras fazem sexo oral umas às outras porque é o que os homens inventam para se excitarem; quando as mulheres são monstruosas, vestem calças, fumam, andam a cavalo de noite pela cidade e roubam do cemitério a cabeça de antigas amantes, quando os homens são monstruosos têm membros de tamanho tal que merecem poemas mesmo dos autores mais cis-hetero; umas senhoras ficam em casa a ler a Bovary enquanto os maridos engatam meninos à porta do circo, outras são lidas como lésbicas simplesmente porque não se querem envolver com donjuans; há ainda professoras estrangeiras que desencaminham meninas inocentes em histórias nacionalistas e rainhas que traem os esposos com damas da corte em histórias republicanas; também poetas em cuja alma lutam o masculino e o feminino, poetas que querem ser comidos por marinheiros, poetas que viajam por mundos imaginários como se não tivessem outro (porque «na verdade não há»), como aquele sem luz onde amantes se mordem nas bocas às escuras pelos cantos (que não parece assim tão especulativo como o conto faz querer parecer) ou o outro onde não há só dois sexos (idem) e tudo pode ser orgia de estátuas e espelhos. Vale perguntarmo-nos se estas coisas não poderiam ter sido escritas hoje.

3. Transcrição pobre: «I. crêem alguns que me chamo panasca / verso cortado ao meio como um fruto // II. subitamente negro o meu cabelo assusta-se / eras um mar agora fazes de rio // que nos reserva ainda este contrário / que somos?»

Reprodução a preto e branco de poema de Mário Cesariny in Natália Correia (org.), Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica, 1965.

(Esta imagem é literalmente o hiato que deixámos entre as conversas de verão e de outono, imaginem por agora o que vamos ler de 1926-1974. Vemo-nos segunda.)

4. No segundo grupo do outono passado, lemos textos portugueses de 1974-2022:

de não-ficção
, Movimento de Acção Homossexual Revolucionária («Liberdade para as minorias sexuais», 1974)
, Guilherme de Melo (Ser homossexual em Portugal, 1983)
, Lara Crespo (Despida: reflexões de uma mulher transexual, 2016)
, Jó Bernardo («O mundo de Jó», 2017);

de teatro
, Bernardo Santareno («A confissão» em Os marginais e a Revolução, 1979)
, Mário Cláudio (Henriqueta Emília da Conceição, 1997)
, Armando Silva Carvalho (Auto do Branco de Neve ou Gino/Ginette: farsa trágica, 2007)
, André Murraças (A última noite em que dançámos juntos, 2021);

de ficção
, Al Berto (Lunário, 1988)
, Rui Nunes (Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado?, 1997)
, Álamo Oliveira (Já não gosto de chocolates, 1999)
, Daniel J. Skråmestø (Olhos de cão, 2002)
, Frederico Lourenço (A máquina do arcanjo, 2006)
, Raquel Freire (Trans Iberic Love, 2013)
, Ana Luísa Amaral (Ara, 2014)
, Manuel Bivar (A charca, 2021);

de poesia
, António Franco Alexandre (Sem palavras nem coisas, 1974)
, João Miguel Fernandes Jorge (Direito de mentir, 1978; Actus tragicus, 1979)
, Joaquim Manuel Magalhães (poemas de 1974-1985 em versões de Consequência do lugar, 2001, e Um toldo vermelho, 2010 / Para comigo, 2018)
, Luís Miguel Nava (A inércia da deserção, 1981; Como alguém disse, 1982; Rebentação, 1984; O céu sob as entranhas, 1989)
, Isabel de Sá (esquizo frenia, 1979; Em nome do corpo, 1986; Erosão de sentimentos, 1997)
, José António Almeida (O Rei de Sodoma e Algumas palavras em sua homenagem, 1993)
, Daniel Faria (Dos líquidos, 2000, póstumo)
, Fernando Luís Sampaio (Escadas de incêndio, 2000)
, Helga Moreira (Desrazões, 2002; Tumulto, 2003)
, Jorge Aguiar Oliveira (João Alves, 2004)
, Valter Hugo Mãe (Folclore íntimo, 2008)
, Andreia C. Faria (Flúor, 2013; Alegria para o fim do mundo, 2019)
, Miguel Bonneville (Ensaios de santidade, 2019)
, André Tecedeiro (O número de Strahler, 2018; A axila de Egon Schiele, 2020)
, Ricardo Tiago Moura (Estrôncio, 2020)
, Pedro Neves Marques (Sex as Care and Other Viral Poems, 2020)
, Rafaela Jacinto (Fiz uma coisa má, 2021)
, Duarte Drumond Braga (Os sininhos do inferno, 2021)
, Rui Resende (Lince Rebelo, Dante, 2021)
, Odete (The Elder Femme and Other Stone Writings, 2021)
, Amândio Reis (Pterodáctilo, 2020; Antilha, 2022)
, Cláudia Lucas Chéu (Ode triumphal à cona, 2022)
, Alice Azevedo (Fado Bicha, Ocupação, 2022)
, Ricardo Marques (Desiderio: poemas eróticos, 2022)
, Bernardo Salgado (Sombra & Paisagem, 2022).

5. Gosto dos jantares de amigos da Lara e do sossego do quintal da Jó porque não saberia ter uns nem outro, gosto de monstros que falam na primeira pessoa, gosto daquela imagem do Al Berto que usei uma vez numa performance do homem que mergulha o sexo num copo de água e o dá de beber ao amigo, gosto das ilhas, antilhas e penínsulas anatómicas do Amândio, gosto da amêndoa da Odete, gosto muito de ambos, gosto dos bocados do Rui e leio tudo o que ele escrever como não faço com muitos autores, gosto da lata do Manuel, lembra-me a voz do Variações a dizer «espero bem que vocês sejam também ervas daninhas, odeio erva doce», gosto do Joaquim e do João Miguel, de um ter ficado complicado e o outro simples, gosto do corpo do Luís Miguel, é o meu poeta português preferido, gostaria de o ter conhecido pessoalmente, ao Daniel também, gosto de poetas sagrados, gosto do urinol do Bernardo, já disse antes que a Joana Estrela é a melhor autora da minha geração, mas nunca disse que o Bonneville é o melhor poeta da sua geração. E por isso é que, não raro, escolher textos para ler na livraria é uma investigação de historiografia queer em Portugal – para usar a expressão do André – tanto quanto uma autobiografia.

(Antes, porém, de começarmos na aberta as leituras de 1926-1974, vamos ao Camões – Centro Cultural Português em Vigo com alguns destes últimos textos e outros mais recentes editados desde o outono e que ainda não lemos cá estou a pensar na poesia do Duarte Scott ou nos Sinais de Saturno. Para ser claro, este sábado 18 a livraria estará fechada na Rua do Paraíso, mas aberta do outro lado da fronteira. Vemo-nos segunda.)

6. Uma escolha muito pessoal de seis curtas e longas da década de 1960, para terminar

, The Children’s Hour (William Wyler 1961)

, The Servant (Joseph Losey 1963)

, Vapors (Andy Milligan 1965)

, Persona (Ingmar Bergman 1966)

, Teorema (Pier Paolo Pasolini 1968)

, Funeral Parade of Roses (Toshio Matsumoto 1969).

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