O diabo que temos na mão


1. Esta é a história de uma tradução. Em 1828, Gérard de Nerval fez publicar a sua tradução da primeira parte do Fausto de Goethe. Tinha então vinte anos e começara a tradução com dezanove. Para todos os efeitos, foi uma tradução importantíssima, tanto para a fama de Nerval como para a recepção do texto em França. Foi depois de ler vorazmente a tradução de Nerval que Berlioz compôs a sua oratória, a sua quase-ópera, La damnation de Faust. Victor Hugo (que dois anos depois organizaria, em torno da sua peça Hernani, a luta pelo Romantismo francês) leu-a e viu no jovem Nerval um dos seus. O próprio Goethe leu a tradução e disse, mais tarde, nas suas conversas com Eckermann: «Já não gosto de ler o Fausto, mas nesta tradução tudo adquire frescura, novidade e espírito». E tanto ela é uma coisa outra e tem vida própria que é assim que a tradução é conhecida: como o Fausto de Nerval. Ele, Gérard de Nerval, tradutor e escritor de todos os géneros, precursor de quase tudo (de Proust a Breton a Artaud: todos o reclamam para si), era um desses homens românticos, demasiados. (Tinha uma lagosta de estimação, que costumava passear no Palais-Royal como um cão, na ponta de uma fita.) Mas, como sabemos, tudo o que transborda cai. Com o avançar da vida, doente e cada vez mais pobre, desesperou e matou-se. Tinha quarenta e seis anos. Encontraram-no pendurado pelo pescoço, ainda de chapéu na cabeça. No bolso, tinha as últimas páginas de Aurélia, o seu último romance, que viria a ser publicado postumamente. A última frase diz: «Estou, todavia, feliz pelas convicções que alcancei e comparo semelhante sequência de provas ao que para os antigos representava uma descida aos infernos». Mas eu comecei por dizer que isto era a história de uma tradução, por este motivo que o prefácio da edição portuguesa assinala: «Quando, aos vinte anos, Gérard de Nerval traduziu o Fausto, estava longe de conhecer perfeitamente o alemão».

2. Na sua introdução ao Fausto de Goethe, João Barrento (um belíssimo tradutor e guardião, um homem-umbral) lembra que o problema da tradução está presente logo no início da peça, quando o Doutor Fausto, mestre em «Filosofia, / Medicina e Jurisprudência, / E para [seu] mal até Teologia», aluno recente das artes mágicas, se propõe traduzir o Novo Testamento (procurando, talvez, a revelação pelo texto, ou a terra fértil):

Abrir o arquitexto é uma tentação,
Para, com sentir puro e leal,
Verter o sagrado original
No meu tão amado idioma alemão.

Verter, diz ele. Estamos algures entre a alquimia e a embriaguez: e é nesse intervalo, entre o controlo e o descontrolo, que se escreve este Fausto. Entre a pureza e a tentação, o nada e o tudo. Mas continuemos e percamo-nos no seu método: porque a didascália diz-nos que ele «[a]bre um volume e prepara-se para o trabalho»:

«Ao princípio era o Verbo!», é o que está aqui escrito.
Quem me ajuda? Logo aqui hesito!
Tanto não vale o verbo. Não,
Outra vai ter de ser a tradução,
Se bem me inspira o Espírito. Atento
E leio: «Ao princípio era o Pensamento
Esta linha tem de ser bem pensada,
Para que a pena não corra apressada!
É o Pensamento que tudo move e cria?
Certo é: «Ao princípio era a Energia
Mas agora que esta versão escrevi,
Algo me avisa já para não parar aí.
Vale-me o Espírito, já veio a solução,
E escrevo, confiante: «Ao princípio era a Acção

3. Onde nenhuma só palavra serve, servem todas: é o castigo da abundância. João Barrento segue a estrutura deste pequeno monólogo para pensar a tradução («um processo de leitura rigorosa e de escrita aproximativa») e o seu próprio mister de tradutor. Mais à frente diz: «A tradução é (…) uma traição, uma bela infelicidade – bela e necessária, para afirmar o que de próprio há em mim frente ao apelo do Outro, o que no Outro há de próprio, e que eu não posso nem devo apagar.» Eu e o outro e a necessária mediação (transposição, transcriação, o que quisermos), que se gostava justa (ou neutra), mas, na verdade, nunca é. É o contrato possível. Se dermos por adquirido que um momento crucial para a formação de uma consciência alemã (ainda não nacional, que isso vem bastante mais tarde, mas linguística, isto é, em torno de uma língua e de uma língua enquanto poder teológico, social e político) foi a tradução da Bíblia por Lutero na primeira metade do século XVI, então este Fausto, o de Goethe, é um outro-Lutero: aliás, o Fausto “histórico” (o Doutor Johann Georg Faust, o tal que terá vendido a alma ao diabo e que, logo após a morte, se transformou em lenda) é contemporâneo de Lutero. Fausto (a personagem) é o reverso da luz do Renascimento (que se revela no gabinete escuro), da vontade renascentista de tudo saber e de tudo perceber pelo estudo. O que acontece quando se torna claro (porque a razão desmonta a razão) que a ciência não responde (e não pode responder) a todas as perguntas da vida? Falava em cima do castigo da abundância (todas onde nenhuma), mas podia ter falado do castigo da impaciência, do descontentamento, que é a mesma fome dos sentidos que vimos há duas semanas na forma barroca: se quatro palavras servem, para quê escolher uma? Porque não ter todas ao mesmo tempo? A palavra encontrada por Fausto para abrir o Evangelho de São João (o ato de linguagem bíblico, a palavra-Acção) é o princípio do movimento que vem satisfazer a curiosidade e a sofreguidão de Fausto em relação às coisas da vida (tudo ter, tudo provar, tudo viver): nesse momento, o diabo Mefistófeles (que se lhe tinha metido em casa em forma de cão) uiva, volta a uivar, e logo incha e cresce e a peça arranca, finalmente. O escrivão está pronto para redigir o contrato.

4. Jan Švankmajer filmou o seu Faust a partir de duas ou três ideias de Goethe, mas, sobretudo, a partir de outras versões da história, porque há muitas. A soma de pontas soltas que está na origem de todos os textos-depois, a Historia von D. Johann Fausten, foi publicada em 1587. Logo a seguir, em 1592-93, Christopher Marlowe, um dos grandes poetas isabelinos (que, por estar à sombra de Shakespeare, nunca é lido, traduzido, encenado, etc), escreve a primeira peça de teatro sobre o Doutor Fausto e faz dele, definitivamente, uma coisa de palco: mágica e assombrada. A diferença entre a sua versão (rapsódica, como a crónica popular) e a de Goethe (dois séculos depois) vê-se, por exemplo, na centralidade que o segundo dá à figura da Margarida (ou Gretchen), balão-de-ensaio dos amores (diga-se, das vontades) de Fausto e invenção pura de Goethe. Quando sai do seu gabinete de trabalho e entra no mundo (uma taberna, uma cozinha de bruxa, uma rua), Fausto dá de olhos com Margarida, escolhe-a («Nunca vi nada assim na minha vida») e o resto da primeira parte da peça é a tragédia da mulher escolhida, engolida pelo vórtice que Fausto corre à volta dela. Em Marlowe não há cá vórtices: tudo é leve e escuro, como uma dança de roda. Aliás, o diabo destrói a pobre imaginação de Fausto em duas linhas: «Tut, Faustus, marriage is but a cerimonial toy. / If thou lovest me, think no more of it». No filme de Švankmajer, a cena (maravilhosa) em que Fausto assina o contrato com o diabo com tinta do seu próprio sangue (podem vê-la aqui um pouco abreviada) está montada segundo a mecânica do teatro de marionetas ou de fantoches (situação, repetição, frustração e violência, resolução) que está em quase todos os filmes de Švankmajer (vejam este outro filme dele, que é curtinho): é que, no centro da Europa, o teatro de feira também fez a fama de Fausto. (A propósito de pactos com o diabo, os filmes de Švankmajer, lindos, divertidos, assustadores todos, lêem pelo livro da magia negra: a vida dos objetos, a inconstância da matéria, o corte entre planos como truque da mão.)

Lesson Faust, Jan Švankmajer, 1994.

5. Dependendo da versão da história, o contrato que Fausto assina com o diabo é 1) um pacto de tempo reencontrado (juventude ou anos de vida para fazer isto ou aquilo), ou 2) um pacto de saber (não o dos livros, de que Fausto estava farto), mas um saber empírico: na prática, é um pacto de acesso, é o direito de entrar livremente em todos os lugares do mundo e de ignorar as suas leis. É um pacto pela totalidade da experiência. Mas no fim de toda essa experiência vivida, trágica e cómica, chega a hora de pagar. Na versão original, a da crónica de 1587, Fausto morre num quarto cheio de sangue, e Alfred Schnittke, que compõe primeiro uma cantata e depois uma ópera a partir da crónica, escreve um tango para essa morte. Liszt, cem anos antes, também escreveu umas quantas valsas para o diabo, e muita música faustiana se compôs no século XIX (Wagner, Schumann, e na ópera Gounod e Boito, e muitos outros), porque Goethe trouxe a figura de Fausto (o artista da vida, o jogador, o doente do prazer) para o centro da consciência romântica. Já o século XX, que viu outros pactos com o mal, quase não viu música no Fausto: os novos diabos não gostavam de dançar.

6. Lembram-se das palavras de Goethe sobre o Fausto de Nerval: frescura, novidade e espírito? Goethe ocupou-se com a história de Fausto praticamente a sua vida toda: o Proto-Fausto (a primeiríssima versão) terá sido escrito entre 1772 e 1775, quando o escritor tinha vinte e poucos anos; o primeiro fragmento foi publicado em 1790; a primeira parte do Fausto foi publicada em 1808 (no ano em que nasceu Gérard de Nerval); e a segunda parte, a obra principal dos últimos anos de Goethe, foi publicada em 1832, no ano em que ele morreu, aos 82. É como se Goethe tivesse feito um pacto não como o diabo, mas com o próprio Fausto: com o eterno insatisfeito. Estamos, então, perante uma má tradução, já que o alemão de Nerval não era perfeito, ou isso pouco importa? É que o texto francês viveu, deu frutos. E ler uma tradução, não raramente, é ler pela primeira vez o que sempre lá esteve. De onde: traduzir, e depois dar a ler, será como abrir as portas do jardim que tem no meio a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. E, pelo direito da chave, reclamar o direito de traduzir mal, de mal entender, ou então de acrescentar, de embelecer ou desfear: de me pôr todo no Outro que passa através de mim.

Boa semana,
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