Bois da cor do mar


1. Tendemos a achar que as cores são fixas, naturais: que estão nas coisas e nos olhos: que são uma frequência de luz certa. Mas depois lemos que para os antigos gregos o mar (o fim e o princípio da Grécia) era cor de vinho. É isso que nos diz o todos-os-gregos, Homero, aqui por exemplo, logo no canto primeiro da Ilíada:

(…) Mas logo Aquiles
rompeu a chorar e foi sentar-se longe dos companheiros,
na praia junto ao mar cinzento, olhando para o mar cor de vinho.

A mesma expressão, «mar cor de vinho», aparece várias vezes na Ilíada e mais ainda na Odisseia (pudera, tanto mar). (Como esta, muitas outras expressões aparecem repetidas ao longo dos poemas, como frases musicais: «Aquiles de pés velozes», «Ulisses de mil ardis». São os nomes e a roupa dos nomes, e são a memória e a voz: contam a história da Grécia antes de Homero, que é uma história falada.) Mas a cor de vinho não serve só para o mar: na Odisseia, a certa altura, aparecem dois bois cor de vinho a puxar no campo o sólido arado. 

2. É que demorou a haver, no grego antigo, palavras para o nosso azul. Ainda assim, a palavra κύανος, que deu o ciano e o azul-escuro do grego moderno, aparece no canto primeiro da Ilíada para sublinhar a irritação de Zeus:

Assim falou o Crónida, inclinando o sobrolho azul.
Agitaram-se as madeixas de ambrósia na cabeça
do soberano imortal e o alto Olimpo tremeu.

Frederico Lourenço traduz assim, «o sobrolho azul». Temos, portanto, um duplo problema (nós, de leitura): os gregos não dizem que é azul o que é azul (o mar, por exemplo), e dizem que é azul o que não é azul. Para William Gladstone, primeiro-ministro inglês e estudioso dos poemas homéricos, a incapacidade de ler o mundo e de nomear a coisa azul era prova bastante para concluir algo muito simples: que os gregos do tempo de Homero eram cegos à cor. Ou antes, que os nossos olhos (nossos: os dos homens e mulheres de oitocentos), à força de tanta imagem, de tanta variedade, de tanta pintura, viagem e experiência, se tinham tornado capazes de ver cores que os gregos (os simples brutos) eram incapazes de ver. O problema (a pobreza) estava nos olhos (literalmente nos olhos) dos gregos. Michel Pastoureau conta isto no seu livro sobre a história cultural do azul para a seguir explicar o erro na teoria. O excerto é grande, mas vale a pena copiá-lo todo porque, como é próprio das teorias, elas dizem mais de quem teoriza do que da coisa a teorizar. Diz ele:

Estas teorias (…) parecem-me simultaneamente falsas e indefensáveis. Não só se apoiam num conceito etnocêntrico, impreciso e perigoso (com que critérios se pode dizer que uma sociedade é «evoluída» ou «primitiva»?, e quem decide?), mas também confundem o fenómeno de visão (em grande parte biológico) com o de percepção (em grande parte cultural). Além disso, esquecem ou ignoram a distância, por vezes considerável, que existe em todas as épocas, em todas as sociedades, em todos os indivíduos, entre a cor «real» (se é que este adjectivo quer dizer alguma coisa), a cor percepcionada e a cor nomeada. A ausência ou a imprecisão do azul no léxico grego das cores tem de ser estudada, primeiro, no contexto desse léxico, da sua formação, do seu funcionamento, e depois tendo em conta a ideologia das sociedades que o usam; mas nunca com base no aparelho neurobiológico dos indivíduos que compõem essas sociedades. Esse aparelho que permite a visão é, nos Gregos da Antiguidade, absolutamente idêntico ao dos Europeus de hoje.

Sobre a imprecisão da palavra κύανος, Pastoureau diz ainda: «Na época homérica, qualifica tanto o azul-claro dos olhos quanto o preto de um traje de luto, mas nunca o azul do céu nem o do mar». Já falámos sobre isto em semanas anteriores: os olhos não vêem o que a língua não diz.

3. «O nome da cor é também cor». Pastoureau, pela última vez (no seu Dicionário das cores do nosso tempo): «[A] cor nomeada parece muitas vezes ter um papel mais importante do que a cor percebida. (…) Dizer que um vestido é vermelho está sempre mais carregado de sonhos e associações do que olhar calmamente para um vestido vermelho sem invocar nenhum nome de cor. De resto, é quase impossível não nomear, pelo menos mentalmente, a cor percebida. O nome da cor faz parte integrante da sua percepção. Esta não se reduz a um simples processo biológico. Pelo contrário, activa e solicita a nossa memória, o nosso saber, a nossa imaginação». É isso: a história de uma cor escreve-se com o tempo, por soma e perda de sentidos, e nisso há muito pouco de visão ou de ciência. (Antes das descobertas da ótica, ninguém sabia que a luz se desdobrava numa régua de cor: que o azul levava ao verde e depois ao amarelo.)

4. O pintor francês Yves Klein inventou um azul. (Para deixar claro: inventar uma cor significa amostrá-la e dar-lhe um nome.) Na verdade, o que Klein inventou foi um processo de misturar o azul: de suspender um pigmento (ultramarino) numa resina sintética que, ao contrário do que fazia o óleo de linhaça, lhe conservava o brilho e a intensidade. E esse azul, o azul que tinha o seu nome, tornou-se a sua matéria primeira nos últimos anos de vida (Klein morreu novíssimo, com 34 anos). Em 1957, inaugurou uma mostra numa galeria de Milão com onze telas azuis, monocromáticas, iguais. Chamou-lhe Proposte monocrome, epoca blu. Estamos no momento da arte do século XX em que a abstração começava a tender para a redução e para a repetição. (O minimalismo, enquanto corrente, aparece no início dos anos 60.) Os artistas começavam então a questionar a importância do talento (da mão do pintor) na produção artística e, ao mesmo tempo, as próprias regras do mercado da arte. Onde está o valor (artístico, comercial, etc): no objeto, na ideia ou no lugar? Num texto sobre a exposição, Klein explica que os visitantes passavam pelas várias telas, todas iguais (tamanho e tinta), olhando-as como se fossem diferentes («nenhuma se parecia com outra, como os momentos pictóricos ou poéticos também não se parecem uns com os outros»). O mais sensacional de ver, diz Klein, foram os compradores: porque cada tela tinha um preço diferente. «Cada um deles escolhia uma das onze telas expostas e pagava o preço que era pedido. (…) Isto demonstra que a qualidade pictórica de cada quadro era perceptível por outra coisa que não a sua aparência material e física».

5. Na semana passada, porque o Paulo estava a escrever sobre VIH/SIDA, vimos dois filmes de 1993. Não vou falar do primeiro, Silverlake Life: The View from Here, de Tom Joslin e Peter Friedman, porque não sei o que dizer: só que é sobre a doença de morrer e sobre a necessidade (pessoal e política) de o mostrar. O segundo foi o Blue, de Derek Jarman. Pela mesma lógica, este é sobre a necessidade não de mostrar, mas de contar a morte. «I think the film is magnificent – it’s the first time I’ve been able to look one of my films in the eye». Jarman, que era seropositivo desde 1986, começava agora a perder a visão: via em clarões de azul. O filme conta a história dessa e doutras perdas trazidas pela doença: a perda do corpo, dos amigos. Como filmar tudo isso sem o filmar? Durante os setenta e nove minutos do filme a única coisa que vemos é um campo de azul: o mesmo azul que Yves Klein inventou. (A única? Dificilmente: vemos muitas coisas com os ouvidos.) E assim, no meio desta crónica de uma morte anunciada, deste sonho em alto céu, Jarman escreve uma história pessoal do azul. Sublinho: pessoal. Aliás, o seu último livro, Chroma (subtítulo: Um livro da cor), segue a lição das Anotações sobre as cores de Wittgenstein: é o livro de um homem perto da morte (no caso de Wittgenstein, de cancro) a procurar nas cores (no que viu e no que leu) uma espécie de sistema ou de antissistema: de toda-a-vida. Numa primeira fase, antes de ser engolido pela chegada da morte, Blue ia ser uma mais clara homenagem a Yves Klein e, por acaso (ou não), Klein ficou muito conhecido (para além dos azuis) por uma fotomontagem, esta, chamada Salto para o vazio, que ele publicou na primeira página do seu próprio jornal, o Dimanche de 27 de novembro de 1960 («o jornal de um dia só»). Suspenso no ar, o artista pode cair ou levantar voo. Klein voltou várias vezes ao vazio na sua obra: a galeria, a tela, o pleno espaço para lá da figuração e da representação. A ideia de uma absoluta projecção (de um salto total) e de um espaço em azul pronto a ser preenchido. «An infinite possibility / Becoming tangible».

Blue, Derek Jarman, 1993.

6. Jarman morreu em fevereiro de 1994, poucos meses depois da estreia do filme. Entretanto passaram trinta anos e a doença é outra doença: já não é uma lista de amigos. Mas a morte é sempre a mesma, seja qual for a causa: é um tecido puxado sobre o rosto. O que fica de nós? Para além dos filmes, dos quadros, dos diários, para além do jardim em frente ao mar, o que é que ficou de Derek Jarman? Ficou isto, justamente: um véu de cor brilhante sobre os olhos, uma história falada, um cavalo azul contra a morte. Vão perdoar-me se termino a carta desta semana numa espécie de código, que é um bater de dedos na pele. (Ele vai perceber.) Se eu morresse hoje, e nessa morte fechasse ou abrisse os olhos, veria o mesmo pano de azul que vi há quase dez anos, não muito longe daqui, num plano de pedra deitado (branco o lençol), quando te ouvi ler pela primeira vez: e saberia muitas coisas que entretanto aprendi, mas uma antes: que essa primeira vez (felicissimamente) não foi a última.

Boa semana,
r

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