O meio


1. Hoje, sexta-feira, 19, estreia em Guimarães um espetáculo, a partir de uma peça de Yukio Mishima, para o qual eu fiz a dramaturgia. A encenação é do Albano Jerónimo e da Cláudia Lucas Chéu. Fazem só uma apresentação (sim, uma: estreia e acaba hoje): a seguir, o espetáculo passa por algumas cidades e termina em Lisboa em janeiro do próximo ano.

2. Em 1965, Mishima escreveu uma peça que ficou conhecida no Ocidente como Madame de Sade: a história das mulheres em torno do Marquês (a Marquesa e outras cinco mulheres) durante os seus anos de prisão. (Podem ver aqui a encenação de Ingmar Bergman, que o próprio filmou para a televisão.) Diz a história que a Marquesa de Sade, que se manteve fiel e dedicada ao marido durante todos aqueles anos, e que sempre defendeu o seu mal como algo sagrado, o deixou assim que o libertaram: recusou voltar a vê-lo. Segundo Mishima, foi isso que o levou a escrever a peça: para perceber essa estranha decisão. Quer dizer, não foi só isso: aparentemente tinham-no acusado de não saber escrever mulheres e ele quis provar-lhes o erro. Três anos depois, faz o exercício contrário: escreve uma peça só para homens. Quatro homens, três atos, um cenário. Essa peça, densa, difícil e dura de desmontar, chama-se O meu amigo Hitler.

3. Guardem o desconforto com o título, pelo menos para já. A acção passa-se na Chancelaria, em Berlim, no verão de 1934. Hitler está no poder há pouco mais de um ano (ficou em primeiro lugar nas eleições de março) e tem tratado de consolidar o seu poder. Ilegalizou sindicatos e partidos políticos, prendeu os seus líderes (secou toda e qualquer oposição) e fez do nazismo a religião, a moral e o destino da Alemanha. Mas havia obstáculos a essa frágil estabilidade (porque os velhos generais e os banqueiros continuavam com dúvidas em relação aos nazis) e um desses obstáculos estava dentro do partido. Após a Primeira Guerra Mundial, os tratados impediam que a Alemanha formasse um verdadeiro exército, e a força desordenada da rua (a vontade de partir coisas: aquilo a que Mishima, perfeitamente, chama «os braços dos rapazes») reunia-se em pequenas milícias, mais ou menos organizadas: foi assim que começaram as SA, as forças paramilitares do partido Nazi. A sua função (real e política) era espalhar o medo pela noite, criar e resolver distúrbios: e, assim, justificarem a sua própria existência. Em 1934, as SA eram já três milhões, várias vezes o número de oficiais do exército: aos olhos de alguns, começavam a ter demasiada força. À frente delas estava Ernst Röhm, um velho militar e amigo de Hitler já dos tempos de Munique, mais de dez anos antes. Röhm era homossexual, ele próprio dizia-o abertamente e, ainda que isso fosse mal visto por muitos no partido, não era isso que o tornava incómodo para Hitler. Röhm achava que o exército era uma máquina morta, inútil: faltava-lhe juventude, força, espírito revolucionário. A solução era pô-lo sob a alçada das SA e, claro, sob o seu comando. No entanto, para muitos outros, as SA tinham cumprido a sua função e já não eram necessárias: tinham terminado os dias da revolução. Manter Röhm no governo e à frente das SA (deixá-lo, na prática, com três milhões de rapazes nas mãos) era correr o risco de perder o apoio (tácito) do exército, de que Hitler precisava para chegar a Presidente. Por isso, na noite de 30 de junho, Röhm foi tirado da cama e levado para a prisão de Stadelheim, em Munique, onde foi morto um dia depois. Na mesma noite, e nos dias que se seguiram, centenas de homens foram assassinados, oficiais das SA, opositores internos, e a versão oficial, escrita pela máquina de propaganda, dizia que tinha sido por uma questão de moral: agora estava dado o exemplo, estava o partido limpo desses invertidos, desses perversos. Em The Damned, Luchino Visconti filma a Noite das Facas Longas (que é como ficou conhecida a purga de Röhm e dos outros) e pinta essa imagem de excesso e delírio que algum cinema veio a associar ao fascismo (como Liliana Cavani e Pier Paolo Pasolini também filmaram poucos anos depois): a ideia do fascismo (erótico: sádico e, por isso, político) como a ditadura do sexo e da morte (indissociáveis). Com a ressalva de que ali, naqueles infernos a preto e vermelho, e no ato de os filmar, também há muito de fantasia e de tesão: é a história do olho (do cu). Na verdade, a homossexualidade de Röhm não passou de um pretexto para uma limpeza política, mas o que ninguém percebeu na altura, escreve Richard Plant no livro The Pink Triangle: The Nazi War Against Homosexuals, é que a Noite das Facas Longas inscreveu a morte na estética e no funcionamento do regime: o direito (e o dever) de matarem todos os indesejáveis, «judeus, antifascistas, homossexuais, Testemunhas de Jeová, alguns membros do clero, ciganos, etc».

The Damned, Luchino Visconti, 1969.

4. Sejamos francos: Röhm morreu de amizade (é dele o título da peça: e não de Mishima, mas já lá vamos), porque não acreditava que o seu velho amigo era capaz de o mandar matar. Enganou-se: e morreu. Os outros dois, além de Hitler e de Röhm (e Hitler é, durante a peça toda, uma figura de cartão), são Gregor Strasser e Gustav Krupp. Strasser era um antigo ideólogo do partido que tinha abandonado a política dois anos antes, depois de um desentendimento de base com Hitler: para ele, a força revolucionária estava nas mãos dos trabalhadores, outra massa de milhões (e não dos soldados, como defendia Röhm), e isso punha-o na ala esquerda do partido Nazi (pela mesma lógica, Röhm estaria na ala direita). Ainda assim, quando dizemos que Strasser era de esquerda é preciso percebermos que esses ideais socialistas (a nacionalização da economia, a criação de uma economia de base popular) se definiam contra o capitalismo que, para ele, era um sistema internacionalista, isto é, de judeus: era capitalismo e era judeu e, dos dois problemas, o maior, decididamente, era ser judeu. O que o aproxima a Röhm (já que tudo, a não ser Mishima, os separa) é que Strasser vê Hitler como uma força de consenso e, por isso, de bloqueio: antirrevolucionária, refém do exército e da indústria. Krupp (o último dos quatro homens) é essa velha indústria: do ferro, das fábricas de máquinas e de armamento. É ele (o contabilista) quem faz ver a Hitler que Röhm e Strasser são empecilhos à sobrevivência (isto é, à liquidez) do regime. Por isso, e apesar de, naquele momento, não estar na política ativa, Strasser foi outro dos que o regime limpou (preventivamente) naquela noite de junho.

5. Porque é que Mishima escreve esta peça? Ou melhor: porque é que, propondo-se a escrever uma peça só com homens, lhe vêm à cabeça os bastidores do Terceiro Reich? Numa das vezes em que a peça foi levada à cena no Japão, o próprio Mishima fez de Hitler, mas, apesar da facilidade em relacionar as duas figuras, pelo menos politicamente (os dois firmemente na extrema-direita, ainda que em tempos e contextos diferentes), a verdadeira afinidade de Mishima não é com Hitler. (Marguerite Yourcenar defende que o título da peça é uma provocação, não uma profissão de fé: até porque Mishima escreve na folha de sala que o espetáculo é «[u]ma detestável homenagem ao perigoso herói Hitler, pelo perigoso ideólogo Mishima» (perigosos os dois, porque acreditam em mitos). Noutro momento, Mishima diz que “Hitler era um génio político, mas não era um herói”. Quando muito, seria um herói baço: não um herói solar, como o justo e divino imperador do Japão. Importa dizer que a radicalização política de Mishima se segue à morte simbólica desse imperador-deus, que a rendição do Japão fez cair do trono: no seu lugar, ficou um imperador-homem, o que é francamente pouco para um santo-sangue como Mishima.) A verdadeira afinidade do escritor, de entre os quatro homens da peça, é com Röhm: o homem que lê a poesia dos corpos rapazes e que iguala a beleza com a força e a lealdade: como algo que «exige dureza ou disciplina». Yourcenar cita o que Mishima escreve no ensaio Sol e aço: «O exercício muscular» («análogo à aquisição do conhecimento erótico») «elucida os mitos que as palavras tinham criado». Mishima (e a história do seu despertar da primavera, contada em Confissões de uma máscara, mostra isso muito bem) pensa a beleza como algo que há que partir (que cortar e ferir) para conseguir ver: como algo que sangra e que, em última análise, tem de morrer (para se conservar belo). É na morte que Mishima e Röhm se encontram. A propósito das duas peças, Mishima diz que «[t]anto a Madame de Sade como Röhm são levados pelo Eros ao limite do seu amor, de tal forma que a beleza do amor arrisca tornar-se a tragédia do amor. A Madame recusa a tragédia. Röhm aceita-a e, por isso, morre.» Em 25 de novembro de 1970, Mishima, que também tinha formado a sua própria milícia, encena um golpe de Estado pela restauração do poder (divino, efetivo) do Imperador. Quando percebe que o plano falhara redondamente (porque ninguém o quis ouvir), mata-se, ritualmente: rasga a barriga com uma lâmina. Como tinha de ser, aliás. Quatro anos antes, Mishima realizou e protagonizou um filme, chamado Patriotism, que é um ensaio geral para essa morte: uma carta de suicídio, um testamento aberto em vida. (E para perceber melhor essa tentativa de golpe e a inevitabilidade da morte que se lhe seguiu, entre muitas outras coisas, vale a pena ver o belíssimo filme em pedaços que Paul Schrader fez a partir da vida e obra de Mishima.)

Mishima: A Life in Four Chapters, Paul Schrader, 1985.

6. O golpe de Mishima falhou (como tinha que falhar), mas a Noite das Facas Longas serviu para tranquilizar os velhos poderes (sobretudo o exército) em relação ao novo: deu-lhes a certeza de que tudo ia ficar na mesma. A peça termina com uma frase assustadora. Mortos os outros, sobram dois homens em cena: Hitler e Krupp. Krupp «senta-se confortavelmente numa cadeira» e dá os parabéns a Hitler por ter livrado o partido daqueles dois agitadores, por ter sido tão limpo e impiedoso, e diz-lhe que a partir daquele momento pode confiar nele, isto é, vai segurá-lo no poder (e não se esqueçam, Krupp é a indústria, que é o cofre dos bancos: Krupp é, de facto, o dinheiro): «A partir de agora podemos deixar tudo a teu cargo sem preocupações. Estiveste bem, Adolf. Cortaste a esquerda e, ao virar da espada, cortaste a direita». Se pensarem bem, o gesto que Krupp descreve é o de um samurai, em duas medidas de quatro tempos (imaginem o Toshiro Mifune de espada na mão): um (corta), dois (vira e corta), três (espera) e quatro (espera) e cinco (caem), seis (devagar), sete (as) e oito (cabeças). Silêncio. Hitler «vai ao centro do palco» e responde: «Sim, o governo deve seguir pelo caminho do meio». É assim que Mishima faz o pano cair, sobre este pedaço de moderação e de bom senso. Na verdade, sabemos no que deu este meio, que era o das pessoas de bem da Alemanha de então: milhões de perseguidos e de mortos e um continente inteiro em ruínas. Tudo em nome desse meio e para defender coisas que nunca existiram: a pureza mítica da raça, a honra da nação, o futuro do povo. Ficções as três: imagens para pôr num selo do correio. No espetáculo que estreia hoje a partir do texto de Mishima, escolhemos tirar todas as referências que o punham marcadamente naquele tempo e naquele lugar (a Alemanha de 1934), porque bastante mais cedo do que esperamos, num gabinete algures em Lisboa, alguém precisará de manter-se no poder e terá conversas muito parecidas com estas: e nós, que (felizmente) não somos pessoas de bem, seremos um belo pretexto, porque estragamos o desenho que um certo Portugal faz de si mesmo.

Boa semana,
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