baseado


1. MY BACK WAS A BRIDGE FOR YOU TO CROSS

Terça 16: saiu uma música de Anohni, novamente com a banda The Johnsons (dez anos depois), e foi revelado que a capa do álbum teria uma fotografia de Marsha P. Johnson por Alvin Baltrop.

Quarta 17: chegou à livraria o livro Blacklips: Her Life, and Her Many, Many Deaths, organizado por Anohni e Marti Wilkerson: um belíssimo conjunto de fotografias do coletivo Blacklips, posters, poemas e guiões do cabaret dos anos 90.

Nesse mesmo dia, ela publicou este texto no instagram em que conta a história da sua relação com Marsha. Anohni muda-se para Nova Iorque com 19 anos (Marsha, de 45, também se mudara para Nova Iorque mais ou menos com a mesma idade; aqui, passaram mais de 20 anos desde Stonewall, não será preciso dizer que Marsha envelheceu: foi ativista, prostituta, performer, passou pelas polaroids de Andy Warhol, criou a Street Transvestite Action Revolutionaries, tomou conta de amigos durante a pandemia, descobriu-se também ela infetada, viveu sempre no limiar da pobreza e da doença mental). Estamos em 1990, Anohni vê-a por vezes, conversa sobre ela com outras pessoas, mas demora dois anos a falar-lhe. Em 1992, consegue finalmente fazê-lo, é a Marcha do Orgulho de Nova Iorque (criada a 28 de junho de 1970, o primeiro aniversário da Revolta). Uma semana depois, Marsha viria a ser encontrada no rio.

Vinte e seis anos separam Anohni de Marsha, Anohni nasceu dois anos depois de Stonewall e, ainda assim, há um vínculo que as une, imagens, espetáculos, canções, o nome de uma banda. Hoje os nomes de ambas têm o mesmo tamanho de seis letras.

2.

Quinta 18: fomos ao Batalha ver Vestida de azul (Antonio Giménez Rico 1983), que retrata a vida de prostitutas e performers trans na movida madrileña. Acabámos por encontrar-nos lá com muitas pessoas de quem gostamos. No fim, houve uma conversa com Valeria Vegas sobre o livro que escreveu a partir do documentário e com Jó Bernardo sobre o seu passado de ativista, prostituta e livreira. Sempre que Jó dizia «comunidade», fazia aspas com os dedos.

Na aberta, estamos novamente entre exposições. O Lince abriu o primeiro semestre com uma exposição individual e vai abrir o segundo semestre numa exposição coletiva com curadoria sua. A ideia era ser o que estaria patente na livraria durante o «mês do Orgulho» e o nosso segundo aniversário, até ao fim de semana da Marcha do Orgulho do Porto. Ele pensou em reunir trabalhos de seis pessoas para pensar no conceito de «comunidade». Depois da Jó (after Jó), nós sugerimos que a exposição se chamasse Entre aspas.

É uma exposição-entre-aspas? É uma comunidade-entre-aspas? É uma comunidade entre aspas (atacada por chifres de animais ou instrumentos de tortura)? É uma comunidade baseada em citações? A inauguração é na quinta-feira 1 de junho, às 18h, e tem trabalhos das seguintes pessoas

, João Carinho (-/-)
, Lince Rebelo (ele/dele)
, Patrícia Shim (ela/delu)
, Pedro Tinôco (elu/delu)
, Ruben Roxo (ele/dele)
, Sofia Melancia (ela/dela).

3. ALL THE BEAUTY AND THE BLOODSHED

Ontem chegou à livraria o livro The Ballad of Sexual Dependency de Nan Goldin, história de uma «re-created family, without the traditional roles». Esperávamos por ele há demasiado tempo e foi uma grande emoção poder finalmente vê-lo. Neste momento, as fotos são já muito conhecidas, não sabia é que, para além de fotografar, Nan também escrevia. Este parágrafo inicial veio completamente ao encontro daquilo em que eu ando a pensar:

In my family of friends, there is a desire for the intimacy of the blood family, but also a desire for something more open-ended. Roles aren’t so defined. These are long-term relationships. People leave, people come back, but these separations are without the breach of intimacy. We are bonded not by blood or place, but by a similar morality, the need to live fully and for the moment, a disbelief in the future, a similar respect for honesty, a need to push limits, and a common history. We live life without consideration, but with consideration. There is among us an ability to listen and to empathize that surpasses the normal definition of friendship.

Esta ideia de uma vida partilhada com amizades está também presente no mais recente documentário de Laura Poitras (que, se apanharem por aí, não hesitem em ver). E é dura, mas necessária, a oposição com a vida que Nan teve com uns pais que não sabiam ser pais porque só o eram por convenção. Isso já se notava nas fotos do livro, nos retratos a solo, a par, a mais, no carro, no hotel, «X na minha cama», «X na sua cama», até à foto do piquenique de todo o grupo. O documentário dá-lhe, no entanto, contexto, é uma história de salvação, de todas as pessoas que nos vão salvando. Brigitte Vasallo fala muito bem disso no seu O desafio poliamoroso,

Fala de sororidade e de meta-amores. Fala de construir comunidades e de parar de apenas remover a lama monogâmica dos amores românticos. Fala de construir relações de outra maneira, ainda que não apareçam tão bem no currículo amoroso nem nas redes sociais. Fala de nos tornarmos bastardas, nos tornarmos mestiças, de nos apoiarmos mutuamente e recusarmos a rivalidade. E também fala de deixar ir, respeitar o espaço vital e entender que todas as raízes estão interconectadas.

«Cookie at Tin Pan Alley, New York City 1983», The Ballad of Sexual Dependency (Nan Goldin 1986).

4.

Domingo 21, manhã: acordei com imagens no instagram do concerto da Odete da noite anterior. Várias pessoas a filmaram dos seus respetivos pontos de vista e quando ela partilhou essas diferentes histórias no seu perfil foi como se nos desse a ver um vídeo muito bem realizado, uma manta de retalhos.

Nunca tenho palavras suficientes para o orgulho e a reverência que sinto sempre que vejo algo dela, não distingo a sua força da sua fragilidade e isso assusta. Sentir orgulho por algo que não é nosso, não influenciámos, por alguém que por vezes nem temos de conhecer pessoalmente, é um sentimento que me tem acompanhado pela vida e que guardo com carinho. A relação com as pessoas trans que a livraria me tem permitido conhecer assenta sempre nesse profundo respeito pelo que eu não sou.

Por falar nisso: este sábado 27 de maio, às 18h, encerramos Dozes casas de C.Costa com uma última conversa a partir das esculturas em gesso criadas sobre o corpo de pessoas trans. Temos pensado muito nesta conversa e planeado (ou esperado) um espaço de muitas perguntas e poucas respostas. Se isso vos interessar, já sabem onde vir ter.

5. HIDDEN IN THE CAVE WE FORGE OF ONE ANOTHER

Domingo 21, tarde: voltámos ao Batalha, desta vez para ouvir CAConrad, publicada em Portugal por Alice dos Reis e Isadora Pedro Neves Marques (para quem não se lembra, foi o primeiro livro que apresentámos na livraria, na altura só com as editoras). Acabámos por encontrar-nos lá com muitas pessoas de quem gostamos. Foi maravilhoso, por mero acaso, também ter conhecido Raquel Salas Rivera, em viagem por Portugal.

CAConrad esteve cá para inaugurar uma exposição, lançar um livro novo e ler o tal que está traduzido. A Ana Rocha ativou a sua rede de afetos para ler em voz alta e de improviso O livro de Frank. Foi mais um daqueles momentos em que de repente olhamos para o lado e vemos muitas pessoas a quem dar abraços.

Às vezes ficamos um pouco cansados por a palavra «comunidade» parecer tão vazia de sentido, tão abstrata. Não que seja um problema da palavra em si, que sempre pressupôs um certo grau de lidar-com-o-invisível, quando Benedict Anderson definiu o que faz uma «comunidade imaginada» já dizia que «até os membros da mais pequena nação nunca conhecerão, nunca encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria dos outros membros dessa mesma nação, mas, ainda assim, na mente de cada um existe a imagem da sua comunhão». Tendo por base algo real ou não, o cansaço de cada um de nós é, sim, sempre válido. Mas depois o cansaço dá, eventualmente, lugar a um espaço de uma hora de claridade, como disse um amigo esta semana, uma aberta no tempo, diria eu, e pensamos que se calhar ajuda, entre o indivíduo solitário e a comunidade lata, encontrar os diferentes grupos de afinidade a que pertencemos simultaneamente.

Grupos de pessoas que se encontram num mesmo espaço, uma escola, uma livraria, um bar, grupos de pessoas que vivem em partes diferentes do mundo mas contactam online, grupos de pessoas que gostam de uma mesma cantora, uma causa, um kink, grupos de pessoas de tempos diferentes que, de repente, são linhas paralelas aos nossos olhos, grupos de pessoas e outros animais que se tocam e se cuidam, grupos de pessoas que formam redes de apoio sempre que preciso, coleção de eus.

É tarde, eu termino as minhas cartas sempre no próprio dia. Fechemos hoje com Abolish the Family: A Manifesto For Care and Liberation de Sophie Lewis:

We can talk about extending kinship to the whole world all we want. If kinship were truly something we valued as made, not given, we wouldn’t have to specify the word «chosen» (as in: «chosen kinship» or «chosen family») when we are talking about kinship that isn’t imaginable as governmentally ratified (marriage or guardianship based), genetic, or bloodborne.

We need concepts with more bite, concepts like «comradeliness» or «accomplice». Or, if we want something intermediary, we could also consider resurrecting the defunct first half of the still-familiar Old English phrase «kith and kin». The concept of «kith» denotes a form of dynamic relation between beings, a bond similar to «kin», but one whose ground is knowledge, practice, and place, rather than race, descent, and identity. (In her essay «Make Kith, Not Kin!» McKenzie Wark speaks of kith’s «nebulous senses of the friend, neighbor, local, and the customary».) (…) It’s time to practice being kith or, better, comrades – including toward members of our «biofam» – building structures of dependency, need, and provision with no kinship dimension.»

6. Uma escolha muito pessoal de seis longas da década de 2000, para terminar

, El mar – The Sea (Agustí Villaronga 2000)

, Hedwig and the Angry Inch (John Cameron Mitchell 2001)

, Tiresia (Bertrand Bonello 2003)

, Mysterious Skin (Gregg Araki 2004)

, Les chansons d’amour – Love Songs (Christophe Honoré 2007)

, A Single Man (Tom Ford 2009).

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