Maus atores


History Lessons, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, 1972.

1. Escreve o crítico de cinema Jonathan Rosenbaum:

Asked at the Edinburgh Film Festival why the long sequences inside a car being driven through Rome in History Lessons were included, Jean-Marie Straub replied (I quote from memory), in order to empty the theatre, because people who are not able to look at the street will never be able to understand class struggle. (He added that being able to look at the street was not necessarily easy, that it had taken him some time to learn himself.)

O carro (movimento e moldura) e a rua. Straub está ali a falar sobre o filme que ele e Danièle Huillet fizeram a partir de Os negócios do Senhor Júlio César, um romance inacabado de Bertolt Brecht. (Ei-lo já, com o charuto ao canto da boca. Vai passar o texto todo a soprar-nos fumo para a cara.) (Agora que penso, Lições de história é um belo título para um livro sobre Brecht: tanto o teatro como a política são lições de história.) Brecht (encenador, homem de esquerda) é fundamental para percebermos o cinema de Danièle Huillet e de Jean-Marie Straub porque foi ele o primeiro a sistematizar uma ideia sobre o ator que era (ao mesmo tempo) um avanço e um recuo, e que o cinema deles aproveita (mais a prática de Bresson). (Antes de lá chegarmos, pensem numa coisa: o que é para vocês um bom ator ou uma boa atriz? O que é que ele ou ela faz: e o que é que faz bem? Tem a ver com emoções, as dos atores ou as vossas?) Simplificando, o naturalismo no teatro (no fim do século XIX) normalizou a ideia de que o ator devia confundir-se (psicologicamente) com a personagem, perder-se nela, porque isso ajudaria ao pacto de crença entre o público e o palco: suportaria a ilusão de que o ator está a sentir todas aquelas emoções naquele momento, e que nós, de certa maneira, estamos a ver algo que não devíamos. (Com o nosso bilhete, compramos o buraco da fechadura.) Isso não era verdade antes do naturalismo: não se pedia ao ator que fosse natural (não se pedia que a máscara fosse rosto). (Até porque o que é natural, convenhamos, é muito relativo: é uma questão de verosimilhança mais do que de realismo. Depende daquilo que cada um de nós aceita como verdadeiro.) O que Brecht propõe é que o ator contrarie essa ideia de naturalidade: que seja muito claramente um ator a fazer uma personagem. Que sublinhe, que revele o mecanismo: que quebre a ilusão. Que seja (propositadamente) mau ator.

2. A citação de Rosenbaum (acima) é uma das notas do livro Fassbinder Thousands of Mirrors, de Ian Penman, que acabei de ler esta semana. (Estava agora mesmo a pensar: finalmente tive tempo e cabeça para ler um livro sem ter de escrever sobre ele, e aqui estou eu, a escrever sobre ele.) Penman foi crítico de música a vida toda (começou aos dezoito anos, em 1977) e, segundo ele, propôs-se escrever este livro porque, depois de andar décadas a dizer que Fassbinder tinha sido uma grande influência na sua vida, decidiu (finalmente) perceber porquê. E sim, já falámos aqui sobre isso: de muitas formas, Fassbinder é um homem falhado, tóxico. Ao mesmo tempo, como diz Penman, é o símbolo perfeito de uma maneira de trabalhar cegamente: de fazer muito e depressa (filmes bons, maus, assim-assim: pouco importa, já vem aí o próximo). (Agora que penso, muito do meu fascínio, há quinze anos, também veio daí, dessa vertigem, dessa sofreguidão de tudo fazer. Alguém dizia isso há umas semanas aquando da morte do Martin Amis: pelos vistos, ele gostava de olhar para uma estante e poder dizer: «Daqui até aqui sou eu».) Mas, na verdade, o livro que Penman escreveu não é sobre Fassbinder: é sobre o jovem Ian, no final dos anos setenta, a mudar-se para Londres, a descobrir os seus músicos, os seus filmes: e a aprender a ser gente. (É um belo desarrumo. Penman escreveu um livro de notas, quatrocentas e cinquenta: ideias, histórias, citações. Gosto de pensar que são notas de pé de página, comentários a um outro livro que nunca foi escrito.)

3. Em 1968, Fassbinder (que tinha então vinte e dois anos) dirige uma pequena companhia de teatro que se apresentava na cave de uma taberna de Munique. (Li agora que era num velho cinema com sessenta lugares, mas prefiro a minha memória e a hipótese da taberna.) Fassbinder adora Jean-Marie Straub (é uma questão de afinidade: estética e política) e convida-o para os encenar (a ele e à sua companhia: Hanna Schygulla, Irm Hermann, outros) numa peça de 1926 chamada Doença da juventude, de Ferdinand Bruckner: exame e diagnóstico, autópsia e lírio branco. Straub aceita, mas com uma condição: a sua versão da peça terá apenas dez minutos. E assim, uma peça que (segundo este livro que fui buscar agora à estante) tem oitenta e cinco páginas e três atos (uma peça a sério, é o que isto quer dizer: uma peça de noite inteira) ficou reduzida a apenas dez minutos. Redução é a palavra-chave nesta história: depuração, contração, compressão, concentração (evaporação: não se esqueçam da hipótese da taberna). (Li agora que afinal foi Straub quem quis trabalhar com os miúdos e não o contrário: tinha a história toda errada na cabeça. Porque é que temos livros nas estantes, se eles só servem para nos contrariar?) A ideia fundamental a retirar do exercício de Straub (que a desmesura, a extrema redução, torna mais clara) é que qualquer material, por quaisquer operações que sofra (a pressão que faz o diamante, o cinzel que corta o mármore), se torna noutra coisa, mas numa coisa-nossa: estátua, brilho e urgência. (E a peça de Bruckner, a tal toda, não se perdeu, continuou intacta: foi noites inteiras noutros teatros.) Jean-Marie Straub filmou (num plano único: como no teatro) essa sua versão: é uma das três sequências do seu filme The Bridegroom, the Actress, and the Pimp. A primeira é a noite de Munique vista da janela de um carro (reclames, prostitutas, bombas de gasolina: «a long sequence inside a car being driven»): Fassbinder roubou a ideia e pô-la na sua primeira longa. (O discípulo beija a mão do mestre e chupa-lhe os anéis. A boca: diamantes.)

(Questão: porque tem de ser, costumo escrever estes textos em dois dias. Que outras descobertas, que outras revelações aconteceriam se eu tivesse mais tempo? Três dias, que luxo: um terceiro olho?)

4. Há mais do que um documentário em que Jean-Marie Straub e Danièle Huillet falam do seu trabalho (normalmente, Straub fala enquanto Huillet tenta trabalhar: é um ofício de paciência). Esta semana vi, na mesma noite (em sessão dupla), primeiro Sicilia!, o filme que Huillet e Straub fizeram a partir de Conversazione in Sicilia, de Elio Vittorini (um livro sobre regressar, sobre ser forçado a ver melhor a infância e a memória: sobre rever melhor), e depois Onde jaz o teu sorriso?, o documentário que Pedro Costa rodou durante a montagem de Sicilia!: o filme (quase) todo na sala de montagem, debruçado sobre cada plano, cada corte, cada decisão (outro filme sobre ver e rever: sobre o exercício da atenção). (E Danièle Huillet ainda cortava o filme à mão: cada decisão demora tempo. O computador tirou esse tempo ao processo, para o bem e para o mal.) Há duas coisas que Straub insiste (teimosamente) em deixar claras sobre o seu método. A primeira é que a psicologia (o ópio do público) não está no ator, mas no filme (na forma do filme) e no espectador. Ele explica isso a propósito de um corte entre dois planos. A cena passa-se num comboio. No primeiro plano, um homem (de bigode) conta uma mentira (sobre a sua profissão). No segundo plano, outro homem (que sabe, ou suspeita, que aquilo é uma mentira) responde «A sério?». Se partirmos do princípio que não queremos que o segundo homem reaja de imediato, porque é nesse intervalo que o filme comenta o que está a mostrar, como é que montamos estes dois planos? Onde pomos o corte? Se deixarmos tempo depois da mentira (explica Straub), ficamos a olhar (ou o filme obriga-nos a olhar) para a cara do homem que acabou de mentir. Se cortarmos logo após a mentira, olhamos antes para o homem que sabe que o outro acabou de mentir. Independentemente da solução escolhida (e Straub-Huillet optaram pela primeira), o filme cava esse buraco (esse tempo) que o espectador, inevitavelmente, enche de psicologia (de intenção, de motivação. Não somos capazes de não o fazer: somos um bicho narrativo). Mas em vez da vergonha do primeiro homem ou da acusação do segundo (coisas que a cara do ator normalmente faz: ou que lhe pedem que faça), podemos preocupar-nos com outras coisas: porque é que o primeiro mentiu sobre a sua profissão? Porque é que o segundo fingiu acreditar? Et caetera. É, se quisermos, uma espécie de psicologia em ação: ou uma equação por resolver. Brecht quer que o público pergunte «porquê?», que desconfie, e que leve essa exigência e essa crítica para a sua vida: que aprenda (realmente) a ver a rua. A segunda coisa que Straub quer deixar clara é que não há forma sem ideia, isto é, que no princípio existe a ideia (a origem do filme), depois há a matéria (a película, as imagens filmadas), e é da negociação entre ambas que nasce a forma. Tese, antítese e síntese. De onde vem que um filme se faz três vezes: no papel, na câmara e na mesa de montagem (e Straub-Huillet remontavam várias vezes os seus filmes). Três graus de separação entre o espectador e o real. E se isso é verdade para qualquer filme, não é sempre evidente. Aqui, faz parte da forma do filme.

5. Os primeiros filmes de Fassbinder seguem o processo de Brecht e de Straub-Huillet: provocam deliberadamente a estranheza. (Pelo meio, há uma contradose de filmes franceses e americanos: só é preciso um rapaz e uma arma.) Os atores não fingem nunca ser as personagens (não interessa a confusão e a identificação): são (apenas) o veículo de palavras e de gestos, o buraco cavado entre a coisa e o olho. São o comentário e convidam ao comentário. Mas a certa altura, Fassbinder aprendeu (com distinção) a lição de Douglas Sirk: a do melodrama. (Para simplificar, digamos que foi em 1974, com Fear Eats the Soul, que é a sua versão de All That Heaven Allows, de Sirk. A palavra versão: outra vez.) O melodrama (vou citar uma coisa que escrevi há poucas semanas) é o gesto de complicar impossivelmente uma história simples. E Fassbinder percebe (muito bem) a subversão que o melodrama permite: vai aos lugares da mais trágica e da mais cómica marginalidade. Nesse desenho complicado, o trabalho do ator muda: o que era pouco emoção é agora paroxismo (do nada o tudo: o ornamento, o assalto aos sentidos). É outra forma de tornar estranho o real: esfregando-o nos nossos olhos, pintando-o de cor, multiplicando-o. Escreve Fassbinder: «Douglas Sirk’s films are descriptive. Very few close-ups. Even in shot-countershot the other person doesn’t appear fully in the frame. The spectator’s intense feeling is not a result of identification but of montage and music.» (Fassbinder escreve tão bem sobre cinema.) Continua ele: «Sirk has said: you can’t make films about things, you can only make films with things, with people, with light, with flowers, with mirrors, with blood (…). Sirk has also said: a director’s philosophy is lighting and camera angles. And Sirk has made the tenderest films I know, they are the films of someone who loves people and doesn’t despise them as we do».

6. Estava a escrever este texto e, subitamente, percebi o que estava a fazer: a minha versão (apressada, imediata) do livro de Ian Penman. Versões, reescritas, fragmentos. Por hoje já chega.

Boa semana,
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