Fazer uma coisa como se estivesse a fazer outra


1. Na semana passada, entraram aqui na livraria à procura de um livro do escritor de que mais gosto e eu tive de dizer, com muita pena, que não o temos cá (o tal escritor) porque ele não cabe dentro das linhas que definimos para a livraria: as de uma literatura (que é palavras e imagens) de autoria e de temática queer. (O mesmo pode dizer-se de três quartos das estantes de nossa casa, como é óbvio: que nós não vendemos só o que lemos nem lemos só o que vendemos. Mau seria.) Mas depois pus-me a pensar: será que cabe? Será que consigo convencer o Paulo a deixar-me comprá-lo para cá? Será que consigo argumentar, justificar tê-lo à venda na livraria, sem deixar a minha avaliação toldar-se pelo amor que lhe tenho? Vou tentar. O livro que vieram cá pedir foi o primeiro romance de Thomas Bernhard, Geada, traduzido por Bruno C. Duarte e publicado no ano passado pela Dois dias. 

Thomas Bernhard (fotografia de Michael Horowitz).

2. Ao Batman mataram os pais à saída do cinema, eu comprei um livro do Bernhard num supermercado: cada um tem a origin story que merece. Foi em 2007: nessa altura, estava no segundo ano do meu curso de cinema, a achar que ia ser realizador ou argumentista ou coisa do género. (Spoiler: não sou.) Um dia (foi a vinte e dois de janeiro), numa pilha em saldo no meio do supermercado, encontrei um livro de poesia chamado Na Terra e no Inferno, de um autor que não conhecia. Custava dois euros. Eu não era (e, de certa forma, continuo a não ser) leitor de poesia (só costumo gostar de poesia que não parece poesia, o que quer que isso queira dizer). E o livro tinha um rasgão, um defeito grande na lombada, o que ainda torna mais estranho eu tê-lo comprado (eu que sou tão chato, tão esquisito com os livros): mas eram só dois euros (é o que eu devo ter pensado). Comprei-o. Li-o. No verão do ano seguinte, acabado o tal curso de cinema e já sem vontade nenhuma de fazer filmes, estava eu em Viena, sentado a uma mesa do Café Bräunerhof, o preferido dele, a escrever peças terríveis à maneira de Thomas Bernhard. É que teve duas partes este tropeção, este enamoramento. A segunda começou no dia em que, uma semana exata depois de comprar o primeiro Bernhard (foi uma espécie de golpe ou de doença), comprei o segundo: a peça O fazedor de teatro. Lembro-me de a ler e pensar: isto pode fazer-se? Pode escrever-se assim? Se nunca viram uma página do seu teatro, ele é um poema, uma peça de música, um contraponto: um sistema de metro e ritmo, de repetições e variações e complicações. Além disso, toda a peça é uma zanga com o teatro, como muitas das suas peças: maldisposta, histriónica, espetacular. Depois disso, Bernhard tornou-se o meu novo sentido de humor: o de quem faz uma pirâmide de copos cada vez mais alta, cada vez mais perto de se partir. E pronto: estava eu a meio do curso e, de repente, acabou-se o cinema. A partir de então, comecei a escrever péssimo teatro: achava que ia ser dramaturgo ou coisa do género. (Spoiler: não sou. Mas estive mais perto.)

3.1. Vamos por partes: Thomas Bernhard é uma pessoa queer? Digamos o seguinte: os biógrafos escrevem que ele era «provavelmente homossexual», o que não quer dizer nada e parece mais querer explicar um vazio, aquele que seria ocupado por uma mulher e dois ou três filhos. E os livros, o que dizem? Os protagonistas dos seus livros são sempre Thomas Bernhard, mesmo quando não são. Tudo é verdade e mentira, biografia e ficção ao mesmo tempo. Mesmo os cinco livros que fazem a sua Autobiografia, e que se supõem factuais, estão cheios de imprecisões: são o retrato de um projeto literário, mais do que duma vida. Seja como for, para benefício de quem não o conhece, tentemos uma biografia. Comecemos pelo fim. Thomas Bernhard morre em 1989 com apenas 57 anos, depois de uma vida de doenças pulmonares e cardíacas. A doença, a morte e a loucura estão por todo o lado na sua escrita: bem como o fracasso, a impossibilidade ou a incapacidade de acabar este ou aquele projeto, este ou aquele escrito ou casa ou composição. Ainda assim, Bernhard escreveu furiosamente, até ao fim. Conhecem-se-lhe bem os ódios, porque ele escreveu sobre eles a vida toda, teceu à volta deles (indiscriminada e pacientemente) uma rede, um vestido de Medeia: o ódio profundo à sua Áustria, ao seu papel no Holocausto, aos artistas da cultura oficial, aos políticos de direita e de esquerda, ao clero, às pessoas do povo. Ao mesmo tempo, tudo isso não deixa de ser um jogo, um número de circo: porque é tudo tão excessivo, tão grotesco, tão ridículo. (Ele próprio dizia que era um «artista do exagero».) Parecem ter estado ele e a Áustria a vida toda a jogar ao sério (ou ao contrário do sério). Sabemos quem quebrou primeiro: ainda vivo, Bernhard foi acusado de ser um «difamador da pátria» (a palavra em alemão, Nestbeschmutzer, significa literalmente aquele que suja o próprio ninho). Por isso, vingou-se na morte: proibiu em testamento que no seu país se publicassem os seus inéditos e se encenassem as suas peças enquanto não entrasse tudo em domínio público. (Poucos anos depois, os herdeiros desrespeitaram-no e fizeram as pazes com a Áustria.)

3.2. Se os ódios estão vastamente documentados, amores não se lhe conhecem, a não ser uma relação que o acompanhou desde os dezanove: com Hedwig Stavianicek, uma mulher trinta e cinco anos mais velha a quem ele chamava «a pessoa da minha vida». (Gostei logo da expressão: talvez mesmo sem perceber, ou pelo menos conscientemente, que era uma expressão sem género. Coincidência ou não, descobri Bernhard quando começava a entender a minha própria sexualidade.) Há alguns anos, Peter Fabjan, meio-irmão de Bernhard, médico, que tratou dele nos últimos anos de vida, escreveu um livro (meio carta de amor, meio ajuste de contas: um daqueles livros), em que diz que a relação de Bernhard com Stavianicek era platónica e que o escritor era «essencialmente assexual». E, ainda assim, ou por isso mesmo, Bernhard fala bastante de sexualidade, como aqui, numa conversa com Kurt Hofmann (Em conversa com Thomas Bernhard):

A sexualidade tem uma importância enorme em qualquer pessoa, seja como for que ela a pratique. Ela tem de o fazer, porque a tem em si. Não há ninguém sem sexualidade. Mesmo que lhe cortassem os peitos, o pénis e tudo, a pessoa estaria ainda totalmente dependente da sexualidade. Nesse caso, porém, morreria e seria uma vítima total da total sexualidade.

Uma sexualidade sem órgãos, ou sem corpo, ou presa toda no corpo, teórica, fatal. Bernhard continua um pouco mais à frente:

Tive com mulheres e com homens toda a espécie de relações que se possam imaginar. O que é que lhe hei-de dizer? (…) Sentimo-nos puxados para qualquer lado. E nesse caso ou se é atraído ou não, e assim por diante. Quer seja mulher ou homem, em última análise também isso é indiferente. Seria muito mais benéfico se mais homens o fizessem, provavelmente não haveria o superpovoamento que há assim.

Na última conversa que teve com Bernhard, meses antes da morte dele, Kurt Hofmann pergunta:

HOFMANN: Que espécie de relação teve o senhor com Paul Wittgenstein?
BERNHARD: Uma relação de amor.
HOFMANN: Como é que isso se pode definir?
BERNHARD: Nunca se pode em relações de amor. Porque nunca se sabe donde vem, para onde vai.
HOFMANN: Ele foi, portanto, um grande amigo seu.
BERNHARD: Muito grande. (…)

Tão grande que Bernhard escreveu um livro inteiro sobre essa amizade: chama-se O sobrinho de Wittgenstein. Importa aqui a ideia de definição e indefinição: porque o amor define-se, e indefine-se, no ato de amar.

4. Na verdade, a maneira como lemos os escritores (e como os inscrevemos ou não numa determinada forma de olhar para as coisas) não depende só do que eles escrevem, porque a seguir (no caso dos que escreveram noutras línguas) temos o problema da tradução (essa contabilidade de perdas), que só encontra o que pode ou o que quer encontrar. Reparei esta semana que, num dos poemas do livro Na Terra e no Inferno, José A. Palma Caetano (o tradutor que mais Bernhard verteu para português) traduz assim um pedaço:

(…)
e ouvimos, vindos dos vales, os sons
dos guerreiros mudos, que tinham morrido
por uma pedra, por uma cauda ou uma prostituta.
(…)

Só que a palavra que Palma Caetano traduz por cauda é Schwanz, que quer dizer cauda, de facto, mas não só: o dicionário sugere pila (que me parece pouco). Além disso, onde ali está prostituta, o alemão diz Hure. O dicionário diz que sim, que é prostituta, mas os dicionários sofrem de um estranho pudor para tudo o que é calão: eu diria puta. E, de repente, a cauda é outra cauda, a língua é outra língua: e o verso é outro verso.

5. Chegamos, por isso, à segunda parte da questão: Thomas Bernhard é um escritor queer? Numa entrevista que encontrei esta semana, o escritor Garth Greenwell (que escreve aqui sobre música e literatura) diz que sim:

Long sentences have always appealed to me, as well as a kind of ornateness of style. (…) I’m thinking of writers like Proust and Henry James and Virginia Woolf, moving forward to, say, Thomas Bernhard. I also think that tradition – and this is an aspect of literary history that I don’t think is discussed enough – is a very queer tradition. Proust, Thomas Mann, Virginia Woolf, Thomas Bernhard: These are queer writers.

Ou seja, são escritores queer não (só) pela biografia, mas porque praticam uma escrita queer: por uma questão de estilo. Aliás, quando Bernhard se diz «um artista do exagero», também está a falar da forma dos seus textos: uma escrita torrencial, de frases longas, intermináveis, obsessivas: como piões a girar ou novelos emaranhados ou caminhos pelo meio da floresta, como dores de dentes ou caixas de música: cheias de passos em itálico, sublinhados, ênfases: como um compositor a anotar que isto é piano e isto é forte, e aqui cresce e aqui diminui. A relação com a música (qualquer prefácio o diz) é fundamental na obra de Bernhard: e eu adoro os escritores que fazem uma coisa como se estivessem a fazer outra.

6. Apesar de ter em casa os livros todos de Thomas Bernhard, e há muitos anos, há muitos que ainda não li, confesso, por uma razão que me parecia muito simples: não os queria gastar. Isto é, não queria chegar ao dia em que não teria mais Bernhards para ler. É uma razão simples, de facto, mas estúpida. Primeiro, porque a minha memória é péssima: nunca me lembro do que li. (Só sei em que dia comprei o primeiro Bernhard porque o meu velhinho blog ainda está online e me ajudou com a data.) E, segundo, porque nunca se lê o mesmo livro duas vezes: se tudo correr bem, à segunda encontramos lá coisas que antes não sabíamos sequer procurar. Por isso, depois de passar uma semana a lê-lo e a pensar nele (e a pensar em mim há quase vinte anos), resolvi-me: vou gastá-los, vou finalmente ler os romances todos. (Tristemente, os livros que Palma Caetano traduziu e a Assírio & Alvim publicou estão todos esgotados. À exceção do Geada, encontra-se meia-dúzia de livros em traduções que, muitas vezes, não são as melhores. Num ensaio sobre Bernhard e sobre tradução, João Barrento destrói a edição portuguesa de Betão: «Começo então por me referir a Betão, texto que capa e página de rosto apresentam como sendo de Thomas Bernhard, leio umas páginas e começo a perceber que não se trata de Bernhard». Como diz Milan Kundera n’Os testamentos traídos, às vezes os tradutores não querem traduzir o que lá está: acham que o autor se repete demais e que conseguem fazer melhor.) E, sendo assim, vou ler todos os romances de Bernhard pela ordem em que foram publicados. Abri agora o meu Geada (li a tradução inglesa há muitos anos) e vi (como é óbvio, já não me lembrava) que o livro se organiza em dias, uns longos e outros curtos: vinte e sete. É uma espécie de diário de um fim e de vários começos. Vou pegar nele hoje e lê-lo um dia por dia. Quando acabar, a lua já terá dado uma volta: quase.

Boa semana,
r

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