A RESPEITO DO PESSOAL DOS 20 CENTAVOS…


Guilherme Xavier de Santana1

Dez anos depois de vez em quando surgem aqueles questionamentos “cadê aquela galera dos 20 centavos? Tá todo mundo satisfeito? Acabou a corrupção no país”? Essas são falas clássicas que acontecem no cotidiano. Instigado por um grande amigo que a militância me deu e que também é do “pessoal dos 20 centavos”2 – além de ser um dos 23 ativistas3 perseguidos políticos do processo que condenou injustamente trabalhadores e estudantes que participaram dos protestos que sacudiram as ruas do Rio de Janeiro em 2013 – fiquei pensando nesses 10 anos no qual se completam as maiores revoltas populares da história recente do país. Desde Junho de 2013 o Brasil não foi e nem será mais o mesmo. E é fundamental no contexto atual defender seu legado e história, e ao mesmo tempo rebater falsificações dos acontecimentos e a construção de falsas narrativas sobre o fenômeno político mais importante das últimas décadas do país.

Antes de mais nada é importante dizer que protestos contra o aumento das passagens de transportes públicos sempre aconteceram no país e alguns com bastante destaque histórico. Como exemplos recentes temos as clássicas Revolta do Buzu4 que aconteceu em Salvador (BA) em 2003 e a Revolta da Catraca5 em Florianópolis (SC) em 2004. Inclusive o Movimento Passe Livre começa a se articular nesse período, pautando de forma mais ampla a questão da mobilidade urbana e defendendo a tarifa zero, que reverberou em diversas cidades do país.

Temos que entender também que não houve “Junho de 2013” mas sim “Junho(s) de 2013”. As dinâmicas de manifestações foram diferentes e a história de cada local precisam ser levadas em conta. O Bloco de Luta6 contra o aumento da passagem por exemplo, já vinha atuando em Porto Alegre antes de Junho de 2013. O próprio Movimento Passe Livre (MPL) de São Paulo também já existia e já vinha questionando essa política. Em Belo Horizonte, Fortaleza, Curitiba, Brasília, Salvador, Recife, Goiânia e outros locais pelo território nacional os protestos ocorreram de acordo com as demandas das mobilizações locais, visto que eram pautas muito próximas, mas que centravam seus alvos nos governos estaduais e municipais.

No Rio de Janeiro houve uma soma de fatores que levaram as pessoas para as ruas (além da revolta contra o aumento da tarifa de ônibus): 1) política de remoções covardes nas favelas por conta das obras dos megaeventos que estavam para se realizar na cidade (Copa das Confederações e Jornada Mundial da Juventude em 2013, Copa do Mundo em 2014 e Jogos Olímpicos em 2016); 2) o avanço das obras do novo complexo do Maracanã que queria tirar a força o território da Aldeia Maracanã para fazer um estacionamento; 3) a insatisfação de diversos movimentos sociais com o projeto de cidade excludente e elitista que vinha sendo implementado pelo prefeito Eduardo Paes; dentre outras questões.

Portanto, é fundamental fazer um breve recuo na história para reforçar a constatação de que os protestos do ano de 2013 não surgiram “do nada”. No Rio de Janeiro aconteceu uma greve de bombeiros de repercussão nacional em 2011. Em 2012 tivemos a maior greve da história das universidades federais do país. O evento RIO+20 em 2012 que aconteceu no Rio de Janeiro gerou insatisfação de diversos movimentos sociais com o acordado entre chefes de Estado, ocorrendo uma gigante manifestação a partir desse fato. O processo de privatização dos estádios, o questionamento em relação aos gastos faraônicos com os megaeventos, o processo agressivo de privatização do espaço público, a gentrificação que acabou por cometer “remoções brancas” por conta da Copa do Mundo em diversas cidades inflamou o cenário . Tudo isso gerou protestos em várias capitais que iriam sediar a Copa em 2014 – assim como já ocorreram em outros países do mundo. Tais manifestações aconteceram também antes, durante e depois de 2013 em alguns locais.

Os oligopólios midiáticos do país que sempre exaltou megaeventos e tratava de ufanista competições esportivas, acabou que foi duramente questionado. Essa foi uma característica marcante das manifestações em 2013 em todo Brasil que não podemos deixar de citar que foi a pauta pela democratização dos meios de comunicação. Não à toa diversos coletivos da chamada “mídia independente” começaram a surgir, transmitindo os protestos in loco e de dentro dos atos, entre os ativistas e nas ruas. Essa dinâmica de tratar os grandes eventos de forma acrítica, batendo palma pra seleção sem levar em conta o entorno de transtorno social, foi derrubada em 2013. Diversas vezes víamos representantes da chamada mídia corporativa sendo expulsas dos atos pois estavam ali buscando alguma informação que pudesse mudar o viés por meio de edição e a partir daí criminalizar as ações de quem protesta.

Dito isso, afirmamos que 2013 se enquadra num ciclo de manifestações que aconteceram pelo mundo: Revolta dos Pinguins no Chile e Comuna de Oaxaca no México (ambas em 2006), Indignados na Espanha (2011), Occupy Wall Street nos Estados Unidos (2011), Primavera Árabe (2011). Dentre todas essas manifestações, independente dos seus efeitos e consequências, algumas características dialogam bastante como por exemplo: 1) o caráter de fazer política sem recorrer às instituições oficiais (partidos, parlamentos, representantes eleitos, etc.) – é o povo indignado se articulando, construindo suas pautas e indo para as ruas questionando a ordem estabelecida; 2) a forma como as manifestações iam aglutinando pessoas via redes sociais e sendo realizadas sem pedir autorização dos governantes; 3) a preponderância de táticas de ação direta que dialogam com princípios que vão além da política representativa e dialogam com características da filosofia libertária também se insere nesse contexto de 2013 e dos demais exemplos citados.

Ao pensarmos na realidade que aconteceu no ano de 2013 particularmente no Rio de Janeiro as coisas ficam ainda mais complexas. Como já disse houveram protestos em todos os cantos do país e em quase todas as capitais. Mas na conjuntura carioca especialmente podemos afirmar que a dinâmica teve duração maior, com peculiaridades que vale a pena mencionar. E nesse momento falo como pesquisador mas também como um militante que presenciou nas ruas boa parte dos fatos, em vez de estar com medo do fascismo e analisando por meio das lentes da Globo News ou Mídia Ninja.

Os primeiros atos aconteceram em abril e maio contra o aumento da tarifa dos ônibus municipais. Junto a isso existia uma mobilização contra a expulsão dos indígenas do território da Aldeia Maracanã e também a luta contra as remoções em diversos movimentos de favela por conta das obras para a Copa do Mundo e Olimpíadas. Com o avanço do mês de junho os protestos se intensificaram e a repressão policial também, chegando ao auge no dia 20 de junho onde cerca de 1 milhão de pessoas na Avenida Presidente Vargas se manifestavam um dia após a revogação do aumento. Nesse mesmo dia aconteceu a prisão de Rafael Braga Vieira7, jovem trabalhador negro e em situação de rua que estava passando na rua com um desinfetante. Para a polícia um rapaz negro com tal produto de limpeza na rua poderia fazer um artefato explosivo, e por isso era suspeito, logo foi preso. É um dos muitos casos absurdos que testemunhamos fruto do sistema policial, judiciário e prisional que sempre foi extremamente racista. Mas a prisão de Rafael Braga gerou um grande debate público a respeito do encarceramento em massa no país e o sistema punitivo que se baseia na cor da pele e nas condições sociais desfavoráveis para violar direitos básicos.

A pauta da violência policial foi outro ponto extremamente explorado nas ruas – e dialoga diretamente com a questão do encarceramento. É bem possível que nunca a polícia militar tenha sido tão questionada na opinião pública em tão pouco tempo como foi durante o ano de 2013. Além da repressão nas ruas durante os protestos, o caso do sequestro seguido de morte do ajudante de pedreiro Amarildo8, morador da favela da Rocinha, foi o mais emblemático. Também aconteceram protestos nos complexos da Maré, Alemão, Manguinhos e outras comunidades contra a violência de Estado naquele contexto. A semana do dia 20 de junho foi marcante a nível nacional. E o governo federal na figura da presidenta Dilma Roussef buscou dar uma resposta aos acontecimentos9.

No dia 24 de junho o governo anunciou medidas para buscar apaziguar os ânimos e dialogar minimamente com as pautas das ruas. Dentre as ações ocorreu um diálogo direto e emergencial com o Movimento Passe Livre a respeito do debate das tarifas de transporte público, a fim de desonerar o preço do diesel e com isso a União subsidiaria os custos dos combustíveis; houve uma proposta de reforma política via plebiscito que interferiria na Constituição. Outras ações tomadas pela mandatária do executivo nacional foram a contratação de médicos estrangeiros, ampliação de vagas nos hospitais para médicos residentes e a destinação de 100% dos royalties do petróleo e de 50% dos recursos do pré-sal para a educação. Podemos dizer que essas providências que foram tomadas pela presidenta conseguiram elegê-la em 2014, mesmo com uma popularidade que sofreu desgaste pós protestos de 2013. Ao mesmo tempo o governo federal colocou o exército na Maré, sitiando aquela população e pessoas vizinhas ao Complexo de favelas na zona norte10.

Como forma de responder aos protestos e “assegurar a paz” durante eventos internacionais Dilma Roussef resgatou uma lei da época da ditadura militar, deu uma repaginada e a colocou em prática chamando-a de “Lei Antiterrorista”11 que era na verdade um gigantesco ataque aos movimentos sociais (e continua sendo). É a clássica conciliação de classes: medidas “democráticas” de um lado e punição via repressão do outro como resposta às revoltas de 2013. Os dias foram se passando e tivermos ainda protestos intensos nos jogos da Copa das Confederações (no Rio de Janeiro e em outras capitais onde tiveram jogos) e na Jornada Mundial da Juventude nos meses de Junho e Julho respectivamente.

Em agosto a greve da rede municipal de educação do Rio de Janeiro teve início – uma greve histórica que não acontecia há cerca de 20 anos na categoria local e que teve adesão recorde – e dias depois, ainda no mesmo mês, foi a rede estadual de educação que entrou em greve. As manifestações seguiam fortes dessa vez em apoio à categoria em luta por uma educação pública de qualidade no Estado e na capital fluminense.

Dia Sete de Setembro de 2013 também foi um dia simbólico e ficará na história. O dia em que a esquerda conseguiu parar e acabar com o famoso e lamentável desfile anual das Forças Armadas comemorando a dita Independência do Brasil. Nesse mesmo dia tradicionalmente há algum tempo existe o Grito dos Excluídos após o desfile dos militares, mas em 2013 especialmente no Rio de Janeiro o desfile foi encerrado por sabotagem e ação direta de ativistas. Uma das cenas mais bonitas politicamente falando que presenciei em vida. Além disso, tivemos o dia inteiro de protestos na Avenida Presidente Vargas e arredores, onde manifestantes enfrentaram com êxito polícia e exército.

Até meados de outubro os protestos eram intensos, com repressão do estado de um lado e a resistência da categoria da educação que ainda estava em greve junto à população insatisfeita do outro. Após esses meses tivemos uma breve pausa, para começar 2014 protestando contra outro aumento da tarifa de transporte público imposto pela prefeitura. O filme se repete com ruas cheias e muita gente indignada no Rio de Janeiro, com muita repressão policial como sempre.

O elemento negativo foi o acidente que ocasionou a morte de Santiago Andrade12, cinegrafista da Rede Bandeirantes em fevereiro de 2014. O fato acabou por incriminar dois jovens que estavam na manifestação: Fábio Raposo e Caio Silva. O episódio foi um divisor de águas no que tange a desmobilização nas ruas, além de uma caça do Estado e perseguição a militantes, que foram presos e sofreram com um longo processo judicial, o chamado “processo dos 23” como já dito no início do texto. Tal perseguição começou no dia da final da Copa do Mundo e os processos ainda seguem acontecendo.

Cabe algumas reflexões gerais após apontar fatos importantes que mexeram com a vida política do país em 2013. Existe uma narrativa de parte da esquerda institucional, principalmente apoiadora (quase cegamente) do PT e de Lula que até hoje reforça o seguinte estereótipo: 1) as manifestações de 2013 foram protagonizadas pela classe média ou uma elite intelectual; 2) 2013 determinou o impedimento/golpe institucional da presidenta Dilma Roussef em 2016; 3) as eleições de Jair Bolsonaro em 2018 foi fruto dos protestos de 2013; 4) o início do avanço do fascismo no país foi culpa de 2013.

Para refutar a afirmativa 1 eu trago um dado importantíssimo: foram 2050 greves ao total em todo o Brasil no ano de 2013 segundo o DIEESE. Antes o pico verificado de mobilizações no período até então era de 1989 (1.962 greves). Fora isso, falamos de algumas pautas como a luta contra as remoções em favelas e periferias em tempos de especulação imobiliária nas grandes cidades por conta dos megaeventos; a luta contra a violência policial e a denúncia do terrorismo de Estado escancararam para que servem as forças policiais; protestos por melhoria das condições de vida, por melhores hospitais e escolas em vez de modernizar estádios “Padrão FIFA”; o apoio às greves da educação; e obviamente a luta por um transporte público de qualidade e menos caro ao bolso da população. Tudo isso se configura como pautas da classe média, de uma elite intelectual ou das classes populares? Acho que não precisamos nem argumentar tanto pois o mínimo de reflexão nos mostra que são questões que mexem com a população trabalhadora num geral. Sobre os pontos 2 e 3 respondo de uma só vez: a queda de popularidade da presidenta Dilma após os gigantescos protestos foram muito por incompetência do próprio partido que em vez de ouvir as ruas, apoiar as reivindicações e tensionar com o congresso junto aos movimentos sociais, ficou na defensiva fazendo cálculo eleitoral para ser reeleitos com o mesmo vice-presidente ultra-liberal, que pouco mais de um ano depois se apoderou do cargo de presidente após um processo de impeachment muito controverso e traumático. Michel Temer (MDB) nunca enganou ninguém e muito menos fingia ter um perfil de alguém da política institucional que busca lutar por direitos ao lado do povo. Muito pelo contrário. Temer sempre se mostrou um burocrata e nos bastidores ligado ao empresariado e políticos da ala liberal do congresso. A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 é consequência do enfraquecimento da esquerda institucional pós queda da presidenta Dilma, aumento de grupos de extrema direita dentro e fora das redes sociais de forma organizada, e um avanço da agenda conservadora e reacionária em vários locais do mundo.

A ascensão desse imaginário político pelo mundo acabou por eleger políticos de extrema direita como Donald Trump nos Estados Unidos, Salvini na Itália, Erdogan na Turquia, Victor Orbán na Hungria, Boris Johnson no Reino Unido, além do crescimento de votos nas eleições de partidos de extrema direita como na França e Grécia, por exemplo. Nenhum desses países viveram os protestos de 2013. Enquanto pesquisador e militante não podemos pensar apenas na chave eleitoral e da política institucional como central. E é por isso que o quarto ponto é absurdo quando afirmam que o fascismo é obra do pós-2013. Primeiro que é uma falsificação histórica pois na primeira na metade do século XX o país teve nada menos que um dos movimentos de extrema direita com maiores adeptos fora da Europa no mundo: a Ação Integralista Brasileira (AIB)13. Nesse sentido, é importante dizer também que o lema “Deus, Pátria, Família” não foi criado por Jair Bolsonaro ou seus defensores. É um lema que os integralistas no Brasil na década de 1930 transportaram do fascismo europeu para a realidade do país naquele contexto.

Outra coisa: o crescimento do fascismo na contemporaneidade não é algo somente local. Mostramos o avanço da extrema direita em diferentes países do mundo. Nossa tese é que o período que engloba antes, durante e um pouco depois das revoltas populares de 2013 tivemos um avanço de muitas pautas, movimentos sociais surgindo, renovação das táticas de luta que acabaram por influenciar movimentos posteriores como as mais de mil ocupações de escolas pelo país em 2015 e 2016. No Rio de Janeiro, por exemplo, a Aldeia Maracanã não foi removida e segue resistindo. A Escola Municipal Friedenreich14 que estava ameaçada de fechar também por conta da reforma no complexo do Maracanã não foi demolida e segue com suas atividades. Uma geração de novos militantes se forjaram em 2013, além de ganhos políticos que não conseguimos medir em palavras. A extrema direita, portanto, foi justamente a reação a esses avanços, não o contrário.

Fora isso não concordamos com o rebaixamento de pautas vindos de movimentos sociais e da indignação das ruas em geral. Movimento social e popular não tem a obrigação de diminuir suas reivindicações e nem recuar de sua revolta contra o sistema. Greves, barricadas, lutas diretas por meio de ocupações de praças e locais públicos, ruas e avenidas, reivindicar pautas como educação pública, luta por moradia e direito a cidade, contra a carestia de serviços públicos sempre ocorreram.

É imensurável e extremamente pedagógica a riqueza que 2013 nos trouxe colocando também em relação ao questionamento as instituições de Estado como as de segurança pública e os prédios de poder (casas do legislativo e executivo), e do setor privado capitalista, simbolicamente representados pela quebra de vidraças de bancos e empresas multinacionais. E se formos pensar pontualmente e de forma pragmática as manifestações foram muito vitoriosas no que buscaram lutar de imediato, afinal em quase todo o país as passagens foram revogadas naquele período turbulento. E o mais instigante e importante ressaltar é que dez anos depois a pauta da tarifa zero é tendência em muitos municípios Brasil afora. Tanto que em quase 70 cidades15 a medida para transporte público foi adotada e outros locais estão discutindo formas de viabilizar a passagem gratuita para a população.

Ou seja, não é que aqueles “vândalos” que queriam a utopia de querer um transporte de graça para o povo não eram tão utópicos assim? Pois é! É importante deixar bem claro que o avanço do fascismo nessas bandas é fruto também da conciliação protagonizada pelo Partidos dos Trabalhadores com setores reacionários do empresariado, do parlamento, agronegócio e de igrejas neopentecostais há anos. É se aliar indiscriminadamente com o MDB, colocando canalhas como Temer na vice-presidência e considerar isso como parte do “jogo político” com naturalidade. É favorecer grupos de empresários em megaeventos e remover populações pobres, reprimir povos originários para fazer estacionamento em um lugar ancestral e até tirar uma das melhores escolas públicas do município em nome da ganância de empreiteiros ligados ao mandatário local (o então governador Sérgio Cabral) que era super-aliado do governo federal.

Não foram os manifestantes indo para a rua em 2013 que fizeram nada disso mas sim o PT em nome de uma governabilidade frágil que foi derrubada anos depois a partir de uma articulação de parte desses mesmos setores que eram aliados. Dentre eles estavam lá votando pelo impedimento da presidenta Dilma em 2016 os mesmos pastores, empresários do agronegócio, políticos ligados ao empresariado que apoiaram os megaeventos, e figuras que mostraram a cara renovando o fascismo brasileiro.

Criminalizar 2013 é ser a favor desses setores que articularam a derrubada do PT na presidência e defender o que existe de mais reacionário no país. A luta de classes não existe muro. Não dá pra dar crédito pela abolição da escravidão à Princesa Isabel, assim como não podemos colocar a culpa no avanço reacionário na França seja pós período da Comuna de Paris ou pós-Maio de 1968. E muito menos podemos atribuir eleições de Bolsonaro, cuja conjuntura já tinha mudado há um tempo, às manifestações gigantes de 2013. Isso é no mínimo desonestidade intelectual.

Finalizo o texto tentando responder uma questão bem comum que soa mais ou menos assim: “cadê aquele pessoal dos 20 centavos, hein”? Muitos/as seguem na militância em seus locais de trabalho, moradia e/ou estudo, construindo educação popular, hortas comunitárias, trabalhando e se virando em serviços diversos, fazendo greves e sem recuar na luta por direitos para todos e todas. Outros/as foram covardemente perseguidos/as e sofrem com transtornos psicológicos até hoje e precisam estar sendo acompanhados por profissionais da área da saúde e família por conta de muitas perdas de privacidade e abusos dos órgãos do Estado. Alguns e algumas se afastaram do cotidiano da luta e fazem outras coisas. E infelizmente tivemos algumas mortes de ativistas por motivos diferentes mas alguns muito afetados pelo turbilhão pós-2013.

Creio que temos muitas questões e feridas abertas nesses dez anos. Marcas de derrotas e vitórias fazem parte do percurso, principalmente para quem está nessa vida militante para além de rede sociais ou camapnhas eleitorais. Mas acho mais proveitoso formular a seguinte pergunta retórica: e você, só enxerga o fazer político no seu voto e vai seguir culpando quem se arriscou de maneira solidária na luta por direitos pelo resto da vida? Essa é a narrativa que queremos perpetuar de nossa história?

***

NOTAS

1 Doutor em História Comparada (UFRJ); Mestre em Educação (UFRJ); Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais (UFRJ); Professor de Sociologia da Rede Estadual do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ); Educador Popular do Pré Vestibular Comunitário Machado de Assis do Morro da Providência; Pesquisador do Coletivo de Pesquisas Decoloniais e Libertários da UFRJ (CPDEL-UFRJ); Editor da Revista Estudos Libertários da UFRJ (REL-UFRJ); Militante que vem construindo a Associação de Trabalhadores de Base do Rio de Janeiro (ATB-RJ).

2 20 centavos foi o valor que a tarifa do transporte público aumentou no Rio de Janeiro e em outros lugares do país em 2013, e que gerou insatisfação generalizada.

3 https://brasil.elpais.com/brasil/2014/07/20/politica/1405810378_758119.html

4 https://nucleopiratininga.org.br/revolta-do-buzu/

5 https://ndmais.com.br/noticias/movimento-passe-livre-nasceu-em-florianopolis-e-tomou-o-brasil/

6 http://blocodeluta.blogspot.com/

7 https://www.brasildefato.com.br/2018/06/20/simbolo-da-seletividade-penal-caso-rafael-braga-completa-cinco-anos/

8 https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/02/caso-amarildo-entenda-o-que-cada-pm-condenado-fez-segundo-justica.html

9 https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2013/06/dilma-anuncia-cinco-medidas-em-resposta-manifestacoes.html

10 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/04/05/exercito-inicia-patrulhamento-na-mare-na-manha-deste-sabado.htm

11 https://www.esquerdadiario.com.br/spip.php?page=gacetilla-articulo&id_article=5150

12 https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/caso-santiago-andrade-tragica-morte-ao-vivo-do-cinegrafista-brasileiro.phtml

13 https://www.dw.com/pt-br/como-deus-p%C3%A1tria-e-fam%C3%ADlia-entrou-na-pol%C3%ADtica-do-brasil/a-63371501

14 https://memoria.ebc.com.br/educacao/2013/08/cabral-anuncia-que-a-escola-friedenreich-no-maracana-nao-sera-demolida

15 https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy65e4qnjjpo

Junho de 2023