Eros, doce-amargo


1. Como já devem saber, a livraria comemorou esta semana o seu segundo aniversário. Foi uma semana leve, bonita, e quero agradecer do coração todo às pessoas que vieram cá deixar-nos o seu carinho. Dois anos não é nada: e é imenso. Agora que os festejos acabaram, e quando estava a pensar sobre o que é que queria escrever esta semana, achei que devia falar sobre as lições que estes dois anos nos ensinaram sobre várias coisas, a saber: o que é ter um negócio, o que é ter uma livraria independente e uma livraria queer, e, acima de tudo, sobre o mercado editorial português. Normalmente evitamos falar destas coisas com os nossos clientes, porque (convenhamos) não são coisas que eles têm de saber ou nas quais têm de pensar. Não queremos ser didáticos e não queremos complicar um gesto simples: alguém está a comprar uma coisa que nós estamos a vender. Mas esta semana (e os aniversários parecem chamar a isso) várias pessoas nos convidaram a fazer o balanço deste último ano e a nossa resposta foi: estamos melhor do que no ano passado, mas não o suficiente. A livraria paga as suas contas, mas nós ainda não levamos salários para casa: ainda estamos a investir aqui o nosso dinheiro, o nosso trabalho e o nosso tempo livre. Vamos, então, pensar de forma puramente capitalista: o que é que estamos a fazer mal e (acima de tudo) porquê? Depende só de nós? Mas, antes de começar, algumas regras que defini para mim. Não vou falar desta ou daquela livraria, mas devo falar da FNAC e da Bertrand porque essas não são livrarias: são sítios onde (entre outras coisas) se vendem livros e que, de certa forma, moldaram as expectativas dos clientes em relação ao que podem exigir das verdadeiras livrarias. Pela mesma lógica, não vou falar desta ou daquela editora, mas vou falar de práticas que começam a generalizar-se e que vieram alterar o ecossistema do livro: do qual as livrarias são (por enquanto) uma peça importante (mas cada vez menos).

Funny Face, Stanley Donen, 1957.

2. Vamos por partes. Os negócios são todos iguais: as dificuldades são sempre as mesmas. Mais ou menos dinheiro (próprio ou alheio) é investido, recupera-se ou não esse investimento e gera-se mais ou menos lucro: e os negócios falham ou não falham, duram mais ou menos anos. Toda esta linguagem é detestável, eu sei, mas tenham paciência: a livraria é uma empresa e nós somos empresários. Mas, na verdade, hoje em dia somos todos empresários: quanto mais não seja, de nós próprios e do nosso trabalho. Aqui, nós somos ambas as coisas: vendemos livros e vendemo-nos a nós enquanto livreiros. E assim é que deve ser, o mesmo acontece (ou, pelo menos, espero que aconteça) nas outras livrarias independentes: é por isso que fazemos as nossas compras lá e não na FNAC ou na Bertrand. (E eu sei que estou a falar a partir de um privilégio de cidade grande, porque mais de oitenta por cento do país só vê livros à venda no supermercado. A verdade é que quase não há livrarias nas cidades médias e pequenas: só há as FNACs e as Bertrands dos centros comerciais.) Nós (em Lisboa, no Porto, noutras poucas cidades, nós) que somos clientes de livrarias independentes e que escolhemos gastar lá o nosso dinheiro (num sistema capitalista, é um dos poucos poderes que temos), queremos conhecer as pessoas que as criaram e que dão a cara por elas, e queremos que elas conheçam os nossos gostos e os nossos interesses: queremos que nos saibam dizer que livros estão à nossa espera. Da mesma forma, nós, clientes, queremos conhecer os interesses e os gostos deles, livreiros. Não costumamos pensar nisto (eu nunca tinha pensado até há dois anos), mas não há, verdadeiramente, livrarias-de-tudo: mesmo aquelas livrarias independentes que se definem como generalistas (ou seja, que têm não tudo, mas um pouco de tudo) seguem um critério fundamental: o do gosto dos seus livreiros. A nossa é uma livraria queer, especializada em livros de autoria e de temática queer, mas todas as livrarias, especializadas ou não (e mais ou menos fiéis à sua especialização), têm de escolher os livros que querem vender.

4. Sobre ter uma livraria queer em Portugal tivemos de aprender tudo. O único exemplo português (que não é, propriamente, o de uma livraria queer, porque não se falava então nesses termos) é o da Esquina Cor de Rosa, em Lisboa, aberta em 1999 pela Jó Bernardo. Era uma livraria muito diferente da nossa, como podemos perceber pelo que a própria Jó disse em entrevista à revista Korpus, um ano após a abertura:

Tentamos manter um certo nível de qualidade, mas essas coisas dependem da procura das pessoas. Em termos de literatura, creio que temos uma boa selecção, mas temos que admitir que não é o forte desta comunidade. A maioria da clientela compra sobretudo livros de fotografia, de arte, que tenham sempre a ver com o corpo masculino ou com a cultura do corpo. (…) Temos livros de temática gay, temos autores e escritores que não têm nada a ver com a temática gay mas que são grandes escritores portugueses, como é o caso da Natália Correia. Depois, existem aqueles que são menos softs, mais dedicados à fotografia e à literatura erótica gay, que são os mais procurados.

Entre a abertura da Esquina Cor de Rosa e o seu fecho, seis anos depois, aconteceu uma mudança determinante: a democratização da internet. Por um lado, a pornografia tornava-se digital e, com isso, diminuia a procura dos suportes físicos, em vídeo ou em papel. Por outro, a Amazon começava a substituir as livrarias na importação de livros, e impunham-se duas ideias que, nas últimas décadas, o mercado virtual foi deixando na cabeça dos clientes (e com as quais as livrarias não podem competir): a infinitude do catálogo e a imediatez da entrega. Além disso, é preciso dizer que na viragem do século quase não existiam em português livros dedicados à teoria queer: praticamente tudo o que hoje existe foi editado nos últimos dez anos.

4. E com isso chegamos ao ponto mais crítico, que é o do mercado editorial. Para quem não sabe, as livrarias têm livros em dois regimes: a firme ou à consignação. A firme significa que compramos os livros que temos cá. À consignação significa que as editoras nos cedem os livros para exposição e depósito e que só pagamos os exemplares que já tivermos vendido. Todos os livros que temos cá em edição estrangeira foram comprados a firme: é por isso que, normalmente, temos tão poucos exemplares de cada livro, porque estamos a proteger o risco de não os vendermos. Quanto aos portugueses, depende: algumas editoras enviam livros à consignação, outras só a firme, outras permitem que as livrarias escolham o que querem comprar e consignar. Depois, vem a questão das margens do livro, isto é, a percentagem do preço do livro que fica para as livrarias. Também aí a situação depende e a maior parte das editoras praticam margens que estão entre os 30% e os 40%, com algumas, muito poucas, a oferecer 50%. Uma coisa é certa: são os grandes grupos editoriais que oferecem sempre as piores condições (isto é, as menores margens: porque podem). Mas peguemos no caso (real) de uma média editora (que se diz uma pequena editora, uma editora familiar, e secretamente se quer sentar à mesa dos grandes): esta editora oferece-nos uma margem de 30% e só nos dá a opção de comprar os livros a firme. Além disso (além dessas péssimas condições), demora mais de uma semana a responder aos nossos emails e mais de duas a enviar-nos os livros: parece querer vencer-nos pela incompetência. Ao mesmo tempo (e é isto que é problemático), passa grande parte do ano a fazer promoções, através do seu site, em que oferece aos clientes os mesmos 30% de desconto nos livros que já não são abrangidos pela Lei do Preço Fixo (todos os livros editados há mais de 24 meses: o que, no caso de uma editora que publica muitos clássicos, significa que a maior parte dos livros não se tornam mais difíceis de vender ao fim de dois anos, porque são tão clássicos no momento da edição como dois anos depois). 

5. É isso que, infelizmente, me leva a pensar que, para muitas editoras, começa a ser indiferente haver ou não haver livrarias independentes (para não dizer que estão consciente e ativamente a desejar o seu fecho). Ao transferirem o negócio para as suas lojas online, as editoras ficam com a mesma fatia do preço do livro (porque perdem os mesmos 30% que perdem connosco), mas ganham duas coisas: a preferência e a eterna gratidão dos clientes, que pagam muito menos pelos livros (muito menos pela mesma coisa), e os seus dados de contacto: podem começar a falar diretamente com eles, talhar as promoções à sua medida e (no fundo) contornar a necessidade de livrarias. Outra editora, há uns meses, fez uma publicação nas redes sociais a queixar-se da Lei do Preço Fixo, dizendo que ela a impedia de fazer mais promoções aos seus clientes. Traduzindo: a culpa de os livros serem tão caros era da lei que foi criada para garantir «uma mais ampla proteção dos agentes livreiros que se dedicam exclusivamente a esta atividade nos diferentes concelhos do país e que, para além da comercialização do livro, cuidam dos respetivos acervos e prestam outros serviços culturais, promovendo assim a diversidade cultural». Mas a verdade é que, se a editora calculou o preço do livro já de forma a poder acomodar o desconto que quer, de facto, fazer, isso significa que o livro é desnecessária e artificialmente caro. A culpa não é das livrarias nem da Lei do Preço Fixo, é da ideia de que o livro é um produto pelo qual nunca se paga o preço completo: e de que muitas editoras vendem descontos (oportunidades a não perder) mais do que livros.

6. Com o (pouco) lucro que vai fazendo, a nossa livraria compra duas coisas: o direito de estar aberta e, por outro lado, o dever de ser aberta, isto é, o compromisso de devolver, de dar espaço e tempo, de fazer comunidade, com todas as reservas que temos com o falso conforto da palavra comunidade. Talvez vizinhança seja uma palavra melhor: uma vizinhança do longe e do perto, larga e fina ao mesmo tempo, como uma rede de equilibrista. Um sistema de apoio. Aqui, organizamos conversas, falamos de livros, ensaiamos aulas, mostramos exposições: juntamos as pessoas. Podíamos cobrar por essas coisas (ou na linguagem do negócio: por esse serviço)? Talvez pudéssemos, mas isso não significa que devamos, nem que nos sintamos confortáveis a fazê-lo. Somos péssimos empresários? Definitivamente. Mas pensem assim: quando compram cá livros e nós não vos fazemos desconto, vocês estão a pagar por todas essas coisas que não têm preço e que devem continuar a não ter preço. E, com isso, volto ao que disse no início: o negócio pode falhar, e pode estar perpetuamente em risco de falhar (a espada sobre a cabeça), mas a ideia não. A ideia já ganhou: este espaço era necessário. Dou sempre o mesmo exemplo, por isso vou dá-lo mais uma vez. Foi pouco depois de abrirmos, já não sei quando: um cliente (que não conhecíamos) enviou-nos mensagem a pedir que lhe reservássemos um livro e depois disse: «O meu namorado vai aí buscá-lo». Fim da história. Acho que só semanas mais tarde é que me pus a pensar: será que ele teria dito o mesmo noutra livraria? Será que não teria usado os eufemismos do costume (um amigo, alguém, etc), fosse por que razão fosse (para se proteger, para não ter de se chatear, enfim)? Aqui não o fez. Acho que todas nós pessoas queer (mas não só: muitas mulheres cishetero também) percebemos perfeitamente o que a Alice Azevedo diz no fim do Fado Alice (a música que as Fado Bicha escreveram a partir de uma letra dela: podem ouvi-la aqui). Diz ela:

Eu, todos os dias,
Antes de sair de casa,
Faço uma análise,
Tento perceber como é que me sinto,
Tento perceber qual é o nível de violência
Que eu estou disposta a sofrer nesse dia.
E, conforme, escolho o que é que vou vestir,
Como é que me vou maquilhar,
Como é que me vou apresentar ao mundo.
E saio.

A Alice é uma mulher trans, eu não sou: apesar de ser homossexual, sou um homem cis. Estou infinitamente mais protegido do que ela: ela fala de violência e eu falo de desconforto. E mesmo assim, há dias em que escolho ser menos eu: para me proteger, ou para não ter de me chatear. O facto de esta livraria, a nossa livraria, ser um espaço em que as pessoas se sentem confortáveis para serem mais elas, para falarem connosco dos seus problemas, das suas alegrias, das suas vidas, para viverem connosco, ajuda a compensar todos os falhanços do negócio, todas as coisas que nos recusamos a vender, todos os dias em que não entra cá ninguém. É assim que gosto da nossa casa. Se também gostam dela, defendam-na, comprem cá mais livros, usem-na, vivam-na. Queremos estar cá por muitos anos.

Boa semana,
r

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