«Por uma árvore / que dê primeiro frutos / depois flores / depois folhas / e só depois / muito depois / crie raízes»


1. O fait divers ainda, para começar: esta semana, fomos visitados por uma distribuidora que nos queria apresentar o seu catálogo. Era o tipo de comercial que já conhecemos que vai a todo o lado vender o seu produto sem noção das especificidades de cada espaço. Esta pessoa até parecia saber, quando lho disse, que estava numa livraria queer, mas logo a seguir sugeriu-me, como exemplo, um livro que, nas suas próprias palavras, «não era LGBT», mas lhe parecia que faria todo o sentido aqui por «ser erótico». Não nos é nova esta tensão entre o que cada pessoa considera que faz ou não faz sentido para os nossos critérios, aprendemos isso com outros distribuidores ainda a livraria não tinha sequer aberto. Cada pessoa, principalmente se naquela função, vai ter uma opinião mais ou menos infundada (porque não é possível conhecer todos os assuntos) e vai tentar vendê-la.

A conversa poderia, no entanto, ter sido muito diferente e eu até teria concordado com ela, que qualquer livro erótico faz sentido aqui, se a conceção de «erótico» em discussão fosse outra: não os livros construídos apenas para unir cenas de sexo, soma de momentos de antecipação que são palha de palavras que se podem saltar com pressa de chegar ao ponto esperado (figurativo, explícito), mas os outros em que toda a linguagem é fruição e é a nossa respiração que se vai alterando. Sensivelmente a diferença que Barthes faz entre «livros do Desejo» e «do Prazer». Aliás, que maravilha se alguém vendesse só livros do prazer. Às vezes, eu e o Ricardo pomo-nos a brincar e inventamos outras livrarias especializadas. Nesta nunca tinha pensado, mas até sei que argumento usar para justificar a existência de uma livraria de literatura erótica. Já imagino à porta a sinalética com uma frase que li há muitos anos no Babel de Roger Caillois: «Un certain public se délecte des ouvrages qui agissent sur les glandes lacrymales: pourquoi ne lui fournirait-on des récits capables d’exciter d’autres glandes?».

Por exemplo, eu poderia dizer que os livros que mais vendemos no primeiro semestre de 2023 na aberta (fizemos esse balanço agora por causa do aniversário) são todos eróticos. E isso pode parecer um disparate, e será, de um certo ponto de vista, tendo em conta que está ali um livro infantil e seis de não-ficção. Mas, ao mesmo tempo, dizer isto obriga-nos a olhar para a lista seguinte de outra maneira:

, Um esboço do método ao qual chamei arqueologia paranóica: desvios, interrupções e lubrificações historiográficas (Odete 2022)
, Os vestidos do Tiago (Joana Estrela 2013, reimpressão de 2023)
, As malditas (Camila Sosa Villada 2019, edição em português de 2022)
, Dysphoria mundi: El sonido del mundo derrumbándose (Paul B. Preciado 2022)
, The Dispossessed (Ursula K. Le Guin 1974)
, The Elder Femme, and Other Stone Writings (Odete 2021, reimpressão de 2022)
, Space Crone (Ursula K. Le Guin, edição em inglês de 2023)
, Tudo do amor (bell hooks 2000, edição em português de 2023)
, Um feminismo decolonial (Françoise Vergès 2019, edição em português de 2023)
, On Connection (Kae Tempest 2020).

2. No domingo, fomos ao Batalha ver Spillovers de Rita Natálio com um coletivo de outras pessoas. A partir de um livro dos anos 70 de Monique Wittig e Sande Zeig, de que conseguimos comprar uma edição recente em castelhano para a aberta. Foi a melhor decisão que podíamos ter tomado, ainda hoje ando com o guião do espetáculo na minha mochila. Foi o nosso domingo de descanso depois da semana de aniversário, depois de ouvirmos a Kitya falar de como as prisões (físicas e linguísticas) «limitam a nossa imaginação», depois de ouvirmos a Regina Guimarães dizer que lhe bastava uma brisa para ficar bem disposta.

A dado momento, lê-se no guião da performance (não existe edição portuguesa do livro, pelo que esta tradução é do projeto):

Fabulous touch: O toque fabulatório é uma prática ancestral de cuidado em relação à imaginação. Para a recriação de estórias antigas, ou de figuras do futuro, Spillovers tocam corpos de sus partners como se fossem paisagens sensuais. A ideia desse toque é lembrar o que dá prazer além-humano, como o vento na cara ou a ingestão de flores. Amaciar a penugem de um braço pode convocar a sensação de estar numa praia com areia muito macia.

3. Ontem, num conjunto de eventos em direção à Marcha, estivemos pela primeira vez a ler poesia no Bar of Soap. Foi há doze horas apenas, não deu ainda para fazer o balanço do tempo que lá passámos, mas estive a semana toda a preparar a seleção de poemas e a pensar na minha primeira performance a solo, há dez anos. Como um quadro do Francis Bacon que já vos mostrei aqui, era eu de azul deitado num lençol branco esticado no chão de um espaço público, a ler em voz alta um livro de poesia homoerótica. A leitura durou 5h, o livro terminava e era recomeçado continuamente, a voz ia ficando cansada, no fim provavelmente já quase só um sussurro, «o amor é música que se vai apagando lentamente / até ser um murmúrio até ser / uma voz em surdina, um murmúrio que desenha / no ar a mesma imagem, sempre a mesma». No fim das 5h, havia um minuto de silêncio com as pessoas presentes. Poucos de vocês que estão a ler isto conseguem ver exatamente o que foi, as vidas vão-se sucedendo e as caras com elas. Quando me tentei levantar, falharam-me as pernas. Dei um beijo na testa ao Ricardo, ele estava de casaco amarelo. Foi em maio de 2013, o livro que li então viria a ser destruído em maio de 2016.

4. Na próxima semana, há nova exposição na Livraria aberta. Vai-se chamar desenh(o)desejo e é do Ricardo Marques, que conhecem como poeta, autor do mais recente Desiderio: poemas eróticos das não (edições). Para o Ricardo, as palavras «desenho» e «desejo» confundem-se e alimentam-se: desejar um desenho, desenhar o desejo. Às vezes, a maneira mais justa de representar alguma coisa é mesmo de forma abstrata, ou com uma lente tão aproximada que a imagem explodida deixa de ser figurativa e passa a ser outra coisa, uma paisagem, coordenadas de pontos. É sábado, 15 de julho: começamos a conversar e a ler poemas às 18h e isso acabará por levar-nos aos desenhos.

5.

Ana Hatherly, Le plaisir du texte, ver aqui.

6. Memórias de Adriano (Marguerite Yourcenar 1951):

Pensei várias vezes em elaborar um sistema de conhecimento humano baseado no erótico, uma teoria do contacto, em que o mistério e a dignidade de outrem consistiria precisamente em oferecer ao Eu esse ponto de apoio de um outro mundo. A voluptuosidade seria, nessa filosofia, uma forma mais completa, mas também mais especializada, dessa aproximação do Outro, mais uma técnica posta ao serviço do conhecimento daquilo que não somos nós. Nos encontros, mesmo os menos sensuais, é ainda no contacto que a emoção se completa ou nasce: a mão um tanto repugnante desta velha que me apresenta uma petição, a fronte humedecida de meu pai na agonia, a chaga lavada de um ferido. As próprias relações intelectuais ou as mais neutras ocorrem através deste sistema de sinais do corpo: o olhar subitamente esclarecido de um tribuno a quem explicam uma manobra na manhã de uma batalha, a saudação impessoal de um subalterno que a nossa passagem paralisa numa atitude de obediência, a mirada amical do escravo a quem eu agradeço ter-me trazido uma bandeja, ou a expressão apreciadora de um velho amigo perante o camafeu grego que lhe oferecem. Com a maior parte dos seres, os mais ligeiros, os mais superficiais desses contactos bastam ao nosso desejo, ou mesmo já o excedem. Que eles insistam, se multipliquem em volta de uma única criatura até a cativar completamente; que cada parcela de um corpo assuma para nós tantas significações perturbantes como os traços de uma fisionomia; que um único ser, em vez de nos inspirar quando muito irritação, prazer ou aborrecimento, nos obsidie como uma música ou nos atormente como um problema; que ele passe da periferia do nosso universo ao seu centro, se nos torne, enfim, mais indispensável que nós próprios, e o espantoso prodígio realiza-se, no que eu vejo mais uma invasão da carne pelo espírito que um simples jogo da carne.

Tais pontos de vista sobre o amor poderiam conduzir a uma carreira de sedutor. Se a não segui foi sem dúvida porque fiz outra coisa, aliás melhor. (…) A técnica do grande sedutor exige, na passagem de um objeto a outro, uma facilidade, uma indiferença que eu não tenho relativamente a eles: de qualquer maneira, deixaram-me mais que eu os deixei a eles; nunca compreendi que alguém se saciasse de um ser. O desejo de conhecer exatamente as riquezas que cada novo amor nos traz, de o ver mudar, talvez de o ver envelhecer, concilia-se mal com a multiplicidade das conquistas. (…)

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