Instituto de Estudos Libertários entrevista Cibele Troyano


Sobre teatro, anarquismo e Zé Celso Martinez

Julho de 2023

Folha de São Paulo, 06 de Julho de 2023

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Qual o seu lugar no teatro, onde você se localiza, qual sua linhagem estética?

Dizer qual é o meu lugar no teatro não é muito simples, pois nesses meus quase 50 anos como atriz e educadora vivi diversas fases, com muitos altos e baixos. Mas posso te dizer com segurança o lugar que o teatro ocupa na minha vida: é a minha grande paixão.

Quanto à linhagem estética, gosto de fazer e assistir a espetáculos que propiciem uma experiência artística que leve à reflexão e ao prazer, independentemente do gênero ou da modalidade.

A comédia, por exemplo, sempre considerada um gênero menor, pode ser um forte instrumento de crítica social. Obviamente não estamos falando da comédia preconceituosa, mas daquela que nos faz rir dos poderosos. (1)

Uma modalidade de teatro que é muitíssimo pouco valorizada, apesar de sua extrema importância é a do teatro infantojuvenil. E foi a esse campo que eu dediquei grande parte da minha trajetória. Assim como a comédia, o teatro para crianças é alvo de discriminação. Isso se explica, em parte, pelo fato de ter como público alvo a criança e o adolescente, segmentos que pouco participam da produção de riqueza. Por outro lado, a contradição implícita ao teatro infantojuvenil na qual o emissor da mensagem é sempre o adulto e o receptor a criança – muitas vezes resulta na produção de espetáculos de pouca qualidade artística, com foco no didatismo, em lições de moral ou de qualquer outra espécie. (2)

A concepção do teatro como apenas um meio para conscientizar ou educar também caracterizou a estética defendida por grande parte da esquerda brasileira a partir da segunda metade da década de 1960, influenciada pelo realismo socialista e as teorias defendidas por Georg Lukács, pensador e crítico literário marxista. É contra essa corrente que o grupo Oficina, capitaneado por Zé Celso Martinez Correa vai se opor.

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Nos fale um pouco sobre os seus primeiros contatos com a obra de Zé Celso.

Em 1972, eu estava com 17 anos, fazia teatro no colégio e fui assistir ao espetáculo As três irmãs, de Tchecov, que havia sido montado pelo Oficina logo depois de Gracias, Señor – uma criação coletiva que reunia textos de Nietzsche, Brecht, Oswald de Andrade entre outros, que foi uma referência para a juventude rebelde do período e que, obviamente, foi censurada. As três irmãs me impressionou muito pelo modo poético com que combatia a ditadura e abordava o momento político por que passava o Brasil.

Depois de As três irmãs, Zé Celso foi exilado. Em 1978 ele retornava ao Brasil. Eu fazia parte de um grupo de teatro ligado à Escola de Comunicações e Artes de SP e participei, junto com um grande número de estudantes, de um encontro com ele, que acabara de voltar do exílio. No final da conversa o Zé nos ensinou um mantra africano e a reunião terminou num inesquecível ato coletivo.

Esses dois momentos me permitiram ver de perto aquele grupo que andava na contracorrente do pensamento estético da esquerda tradicional, nacionalista, que defendia o realismo socialista e a ideia de que o teatro seria apenas um meio para fomentar a ação política das plateias. (3)

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O teatro de Zé Celso marcou a sua geração?

Sem dúvida nenhuma. Zé Celso e Oficina significaram uma alternativa tanto ao teatro, digamos, burguês, representado pelo TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) como àquele produzido pela esquerda institucional, representada pelo Teatro de Arena. E creio que continua influenciando as novas gerações. Basta ver a quantidade de jovens atores e técnicos que participam do grupo.

O legado de Zé Celso pode ser reivindicado pelos libertários?

Se formos às raízes da linguagem desenvolvida pelo grupo Oficina, vamos chegar aos movimentos ligados à vanguarda europeia – como por exemplo o dadaísmo e surrealismo, o teatro de Artaud e a música de John Cage. E qual é a característica comum entre eles? É a de não se submeter a padrões pré estabelecidos, de não seguir nenhuma receita pronta e de não conceber nenhum caráter utilitário para a obra de arte, a de defender a liberdade de criação artística. Nesse sentido, eu não teria dúvidas em afirmar que, pelo menos nos anos iniciais do trabalho do Zé Celso e do Oficina há um caráter fortemente anarquista e libertário.

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Quem mais teria participado desse movimento do Teatro Oficina mas não ganhou o mesmo prestígio do Zé Celso?

O grupo é bem grande e passou por vários momentos, desde sua fundação em 1958. Há um grande contingente de atores e técnicos que passaram pelo grupo. Alguns bastante conhecidos como Renato Borghi, Ester Goes, Ítala Nandi. Há inúmeros outros que não têm muita notoriedade. É claro que o nome do Zé Celso é o mais conhecido. Mas, até onde eu sei, ele não gostava de ser chamado de “mestre” e não lhe agradava ser cortejado como um ídolo ou coisa parecida.

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É possível estabelecer algum paralelo entre a obra do Zé Celso e o Living Theatre?

Certamente há uma proximidade entre ambas as obras. Inclusive o grupo esteve no Brasil no início da década de 1970 a convite do Zé Celso. Entretanto, eu arriscaria dizer que a obra do Living Theatre é revestida de uma radicalidade bem mais acentuada, com uma maior independência em relação ao Estado e a verbas públicas, coisa que no Brasil é algo quase que inimaginável. O grupo norte-americano, a meu ver, parece ter um vínculo mais estreito com as ideias e as práticas anarquistas.

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Notas

(1) O fenômeno do riso foi objeto de estudo de inúmeros filósofos e pensadores. Baudelaire fala sobre o riso no livro Escritos sobre Arte, traduzido por Plínio Augusto Coêlho e publicado pela Editora Imaginário. O filósofo Henri Bergson faz uma análise detalhada dos mecanismos que nos fazem rir em seu clássico O riso. Freud em seu O chiste e sua relação com o inconsciente explica as operações psíquicas que estão por trás do riso.

(2) Essa questão é analisada em detalhe por Maria Lucia de Barros Souza Pupo no livro No Reino da Desigualdade, publicado pela Editora Perspectiva.

(3) Para um conhecimento mais aprofundado do papel desempenhado pelo grupo Oficina, Arena e Opinião recomendo o livro de Edélcio Mostaço: Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião.