Acabar o chapéu


1. Foi uma ótima, terrível ideia. Era assim: esta carta ia ser dedicada (ou pelo menos comecei a semana a achar que sim) a ver, detalhada, minuciosamente, uma pintura, um quadro. Mas qual? Talvez por causa dessa mesma ideia (de ver ao perto, encostar o nariz à tela: partir, dividir a imagem pelos olhos), e, na verdade, não só, também porque ando com pontos na cabeça (o Ricardo Marques abre cá amanhã a sua exposição de desenhos: apareçam, é sábado às 18h), e porque o verão está aí: por tudo isso, a vontade foi-me logo para este quadro

de Georges Seurat, chamado Um domingo à tarde na Ilha da Grande Jatte. Tanto para onde olhar. Mas depois lembrei-me que o Sondheim escreveu um musical sobre este quadro (todas as coisas são sobre outras coisas); ou, melhor, escreveu um musical a partir deste quadro; ou, melhor ainda, escreveu um musical a partir este quadro (a explodi-lo, a espalhá-lo pela orquestra, a vê-o pela frente e por trás). E depois li mais sobre o Seurat, sobre outros quadros do Seurat, e lembrei-me do belíssimo dia que o Jean Renoir passou no campo: e o que ia ser uma coisa só (um texto para um quadro, uma ideia simples) tornou-se tudo ao mesmo tempo. «Connect, Georges. Connect.»

2. Rapidamente, sobre o quadro (podem e devem vê-lo aqui, ainda mais de perto). Seurat pintou-o entre 1884 e 1886 (numa série de domingos, como diz Sondheim) e usou-o para investigar uma nova forma de pintar que ficou conhecida como pontilhismo: a técnica de justapor pequenos pontos de cor pura (isto é, de tinta saída do tubo) diretamente na tela, sem as misturar. Numa cena de Sunday in the Park with George, o musical de Sondheim (com texto de James Lapine) de que falo em cima, Seurat convida outro pintor ao seu estúdio para lhe mostrar este quadro. Depois aponta para a figura de sombrinha, à direita, e pergunta:

– Qual é a cor dominante? A flor no chapéu?
– Violeta.
– Olha: vermelho e azul. O teu olho fez o violeta.
– E então?
– Então o teu olho está a ver tanto vermelho e azul como violeta. Só onze cores, sem preto: misturadas não na paleta, mas no olho.

Vermelho e azul e violeta. A canção que fecha o primeiro ato, Sunday, explica o pontilhismo melhor do que qualquer tratado da mecânica do olho:

Sunday, 
By the blue 
Purple yellow red water 
On the green 
Purple yellow red grass, 
Let us pass 
Through our perfect park (…)
Made of flecks of light 
And dark,
And parasols…

A água é azul e é púrpura, amarela, vermelha: é todas e não é nenhuma. (Reparei agora que estou, uma vez mais, a escrever sobre a cor: ou melhor, sobre o efeito do olho na cor.) Os Impressionistas (Monet, Pierre-Auguste Renoir, Pissarro, Berthe Morisot) tinham aprendido a pintar a luz, a prendê-la em tinta antes que ela fugisse. Depois, os Neo-Impressionistas (Seurat, mas também Cézanne, Gauguin e Van Gogh) aprenderam a partir a cor e a vê-la de outra maneira. Ainda assim, o pontilhismo de Seurat não foi logo entendido: quase todas as suas telas foram recusadas pelos salões. Seurat morreu em 1891, aos trinta e um anos. 

3. Antes de pintar o Domingo à tarde, Seurat pintou uma outra tela (não pontilhista, mas já influenciada pelas novas teorias da cor), que é a outra margem do braço do rio: este quadro, chamado Banhistas em Asnières (1884). Alguns críticos olham para as figuras pintadas e para as roupas de uma margem e doutra (esta nua e solar, a outra coada por sombras e sombrinhas) e dizem que esta primeira margem é a dos trabalhadores e a outra a dos pequenos-burgueses que iam de Paris para ver os pobrezinhos. Deste lado, quase parece que o sol (o calor vertical do verão) faz com que as cores fervam, evaporem, fujam às formas: e se tornem luz, quase branca. (Ainda assim, às vezes: a linha nas costas do rapaz do meio corta o ar à faca.) Em 1936, Jean Renoir (filho do Renoir-pai, o impressionista) começou a rodar um filme sobre um dia de verão, Partie de campagne, a partir de um conto de Maupassant. O filme ficou incompleto durante dez anos (o tempo não ajudou) e acabou por ser lançado, em 1946, com um buraco no meio. Mesmo com o buraco, ou por causa dele, é um filme perfeito. Perto do início, há uma sequência num baloiço (todo ar e pano, como o de Fragonard) e a câmara parece que levanta voo: a relva deixa riscos de cinza no céu.

Partie de campagne, Jean Renoir, 1936-46.

O final é triste (o dia acaba em chuva), mas, até lá, o filme é como o rio (e Renoir gostava de rios) que está entre as duas telas de Seurat: entre a ilha e a margem, e entre os olhos das pessoas. (A propósito de filmes, e a despropósito de toda esta carta, passa este domingo de manhã no Batalha um filme de que gosto muito, este: chama-se Mädchen in Uniform.)

4. Alguns anos antes de morrer, o Sondheim juntou todas as suas letras para canções em dois livros (chamados Finishing the Hat e Look, I Made a Hat: novecentas e sessenta páginas de letras e anotações) e depois juntou esses dois livros numa caixa chamada, claro, Hat Box (que, segundo a internet, pesa três quilos e setecentos). Comprei uma para mim. (Se alguém também quiser, nós não temos cá, mas arranjamos.) Comprei-a, mas ainda não fui capaz de a tirar do plástico. Está guardada na livraria. É estúpido, mas acho que, assim que lhe tirar o plástico, e assim que abrir os livros, aquelas vão ser, mesmo e definitivamente, todas as palavras do Sondheim: porque sei que a seguir não haverá outras.

5. Temos feito às segundas as nossas conversas sobre referências LGBTQ na literatura clássica (grega e latina: vamos a meio desta série, a última é dia 31 de julho) e, depois da sessão dedicada à tragédia (lemos partes da Medeia e o nosso Lince só dizia «slay, queen», que é um ótimo resumo da peça, mas enfim: depois da tragédia, dizia eu), a próxima sessão vai ser dedicada à comédia grega e latina (muito Aristófanes e pouco Plauto). Isto porque num dicionário de peças que tenho aqui à mão, a entrada para a peça Acarnenses (a mais antiga das onze que sobraram de Aristófanes) faz um resumo da história e depois diz o seguinte: 

It seems that at least five speaking actors would have been needed to stage the opening scene (…), compared with the three speaking actors in tragedy. These elements, together with the many different incidents and a double-sized chorus, would have made this play seem a fairly lavish affair, the equivalent of our modern ‘blockbuster musical’.

Às vezes esquecemo-nos disso: de que o teatro grego era mais do que as palavras que sobraram, por muito que saibamos (com a cabeça) que havia música e dança e ritmo. Esquecemo-nos que a ópera existe porque os italianos, na viragem para o século XVII, tentaram criar um tipo de espetáculo que fosse como as tragédias gregas: que misturasse a palavra e a música, a voz e o canto. E esquecemo-nos que cada época olha para as coisas com os olhos que tem. Sondheim sabe essa história toda: nos anos setenta, fez uma adaptação d’As rãs de Aristófanes (que é a comédia enquanto crítica literária) e, nos anos sessenta, escreveu as canções de um musical a partir das peças de Plauto. Mas acho que ninguém diria que os musicais de Sondheim (sobretudo a partir de Sweeney Todd, em 1979) são blockbuster musicals (como o terrível Les Mis, ou o Phantom of the Opera): pelo contrário, Sondheim é um perfumista que (também) faz vestidos envenenados (outra vez a Medeia). Em Sunday in the Park with George (que é sobre arte e o mundo da arte), Sondheim fala de ter procurado algo mais fragmentado, mais experimental: mais pontilhado, se quiserem. Os instrumentos e a voz são escritos e tocados com a ponta dos dedos. A música é cristalina e dura: como a água e como o sol no verão. As frases quebradas, angulosas, descontínuas. As palavras postas na pauta com a ponta do pincel. Propositadamente, tudo. É um musical para aquele quadro e para a vida (imaginada) de Seurat: a história de uma certeza (teórica: a cor é uma conta de somar) e de uma obsessão (artística: a arte é uma conta de perder, quase sempre). Como diz Sondheim (o artista), é preciso acabar o chapéu: vermelho e azul e violeta.

6. Em jeito de posfácio, tenho de confessar uma coisa. Esta foi a semana em que descobri a música do João Borsch. (Só agora, eu sei.) De alguma forma, também foi por isso que passei a semana a pensar em musicais, porque nos álbuns dele, sobretudo neste último, o João mete tudo dentro do saco e (depois) sacode e volta a tirar, com um piscar de olho e um gesto da mão: como fazem os mágicos (e os bons musicais). Li uma ou duas entrevistas e ele lá vai falando de musicais (porque lhe perguntam), mas fala pouco e dá poucos exemplos: não sei o que é (qual é) um musical para ele. Acima de tudo, o musical parece abrir-lhe um espaço para ser tudo (e todos) ao mesmo tempo, para ser todas as suas referências musicais: e um lugar de pura teatralidade, como o Bowie a pintar o cabelo e a inventar uma vida nova a cada álbum (como uma ideia queer: a da mudança, da fluidez, da rasteira ao público). Ao mesmo tempo, o Bowie foi sempre o Bowie, que é como quem diz: a superfície da água rasga e revolve, mas esconde sempre o mesmo mar. (Um compositor de que eu gosto muito, o Alfred Schnittke, dizia-se um polistilista: um eclético, um glutão, um misturador de todos os estilos musicais passados e presentes. «The goal of my life is to unify serious music and light music, even if I break my neck in doing so».) Enfim, estou a escrever sobre o João Borsch porque acredito que ele pode ser para muita gente miúda o que o Manel Cruz e os Ornatos (a flor no chapéu) foram e são para mim há vinte anos: uma ilha de música boa; um sorriso ao canto do ouvido, ou uma alegria triste; e um extremo cuidado melódico e lírico (porque o Manel é um dos melhores letristas da música portuguesa: tem uma felicidade com as palavras, como dizem os ingleses; e para mim será sempre alguém que escreve poemas queer). Ouçam a música do João, vão aos concertos dele. Se as pessoas que estão à frente dos teatros os tivessem no sítio (os princípios, quero eu dizer), encomendavam hoje mesmo um musical ao João Borsch: uma coisa pequena, de laboratório, para ele começar a brincar. Já só quero um musical queer escrito em português.

Boa semana,
r

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