Para G.S.


1. Domingo 23, 16h: Andamos a ler sci-fi com a Odete. A última sessão deste primeiro grupo de leitura será com Paul B. Preciado e o seu Testo Junkie. Este livro, que vai do texto pornográfico ao ensaio científico num virar de página, sempre foi a pérola que The Cursed Assembly decidiu esconder-à-vista no fim de um semestre de conversas. É, como não podia deixar de ser, uma provocação: uma auto-teoria sobre sexo e drogas pode ser ficção especulativa? Venham perguntar à Odete e ao Cru.

2. Segundas 24 e 31, 18h: Já na reta final do curso de verão deste ano, as conversas de segunda-às-seis deixam os gregos clássicos e viram-se para os romanos. Esta semana lemos prosa e no último dia de julho terminamos com poesia latina. Nos vários textos que ainda vamos ler, não podiam faltar as Metamorfoses de Ovídio, por exemplo: uma grande enciclopédia de mitos em poesia, de inesgotável inspiração. No entanto, as referências LGBTQ que nos propomos ir lendo e comentando não são sempre positivas (aliás, demos por nós a falar muito de discurso de ódio nestas sessões da Antiguidade Clássica), até porque os textos nunca estão alienados do seu contexto. Exemplo disso é também o que ainda vamos ler de uma História natural (este adjetivo é em si uma tese): algo que só descobri em abril, quando o André Tecedeiro e a Laura Falé vieram à livraria fazer um curso de linguagem inclusiva e ele nos leu uma passagem de Plínio sobre crianças intersexo que eram atiradas ao mar.

3. Quinta 27, 18h: Recebemos a editora Asa do grupo Leya para a apresentação no Porto de Género Queer. O livro, publicado quando Maia Kobabe tinha apenas 30 anos, fala sobre a sua passagem da infância à juventude. Convidámos Cat Martins para nos falar da banda desenhada e das conquistas e limitações desta representação não-binária e com a editora virão Elga Fontes, que traduziu a obra para português, e Marta Maia da Costa, que fez a revisão para linguagem neutra.

4. Sábado 29, hora a confirmar: fechamos este ano letivo de conversas com uma apresentação que muito me emociona (também eu guardo um vestido vermelho no armário). Um dos momentos mais bonitos do fim do primeiro trimestre foi a defesa do Lince na livraria e agora Rui Resende vem apresentar o projeto de conclusão do Mestrado em Estudos de Arte e o tema é a performance drag. Rui entrevistou queens e kings da vida portuense, a atual e a que já não existe. A história dos espaços noturnos do Porto e das pessoas que os criaram e ocuparam está ainda por fazer. Ao ler, por exemplo, a transcrição da conversa com Roberta Kinsky, o único nome de bar gay que ainda me foi familiar, por o ouvir mencionado circa 2006 (ano em que perdemos Gisberta Salce, estava eu no Secundário), foi o Boys’R’Us, que ficava nas Virtudes: todos os outros nomes soam já vazios na minha cabeça e, imagino, na de muitas pessoas das gerações seguintes.

5.

Costume party at the Magnus Hirschfeld’s Institute for Sexual Research in Berlin, date and photographer unknown. Vejam aqui e aqui.

6. Esta semana, a maio maio (editora independente de Ovar) publicou aquela que provavelmente será a obra a fechar o nosso ano letivo – e que belo ponto final. Ao mesmo tempo muito antigo e muito novo, o texto de p. feijó pega num excerto de Aristóteles e trá-lo para o terreno pantanoso da Teoria Queer, como não é comum ver-se na edição portuguesa.

Bichxs de Merda: Aristóteles, fêmeas e outros monstros de-generativos começa por estabelecer a distinção que o «filósofo natural» faz entre animais que se reproduzem sexualmente com seres da mesma espécie (continuidade e unidade: «o mesmo produz o seu igual») e os que são gerados de matéria em decomposição ou fermentação, «solos putrefactos e excrementos» (massa confusa e informe que gera algo de espécie diferente). Do lado destes últimos estão alguns vermes e insectos.

Eventualmente o silogismo leva para a hierarquia que se estabelece entre homens e mulheres (a dinâmica de poder que sobrepõe sempre um dos pólos do binário), ou mesmo entre sexo vaginal e anal. Mas esta imagem inicial dos insectos como algo que causa ansiedade a Aristóteles (não por existirem, mas, como explica feijó, por ele não querer imaginar um mundo em que xs bichxs possam criar uma geração diferente de nós – e tanto que a Antiguidade se debruçou sobre «nascimentos monstruosos») acabou por me relembrar o porquê de termos A metamorfose do Kafka na livraria: o filho que, um dia, acorda diferente e provoca uma transformação na família.

O bicho kafkiano é também um problema queer de tradução (não sabemos o que é nem como veio), mesmo no sentido literal em que nunca se percebeu muito bem qual a sua espécie. A querida Helena Topa, que perdemos este ano, traduz por exemplo uma palavra na primeira frase da novela como «bicharoco», mais à frente no texto outra como «escaravelho de esterco»; nas mesmas passagens, para poderem comparar, João Barrento usa os termos «insecto» e «escaravelho duma figa».

Peguei ontem na tradução da Helena, editada na coleção Penguin Clássicos, e estive a reler rapidamente à procura da merda aristotélica, mas não encontrei: só a ansiedade. Mesmo quando a família de Gregor Samsa deixa de lhe limpar o quarto, o máximo de que se fala é pó e comida podre. Imagino que isso diga mais sobre as fobias do autor do que sobre o arrepio cultural de nojo e imundície que sentimos quando nos referimos a seres rastejantes. Também pode ser por eu saber que existe esta entrada muitíssimo reveladora no diário de Kafka,

27.X 1911 (…)

O costume de mergulhar os dedos três vezes em água logo a seguir ao acordar, já que os espíritos malignos se alojam nas falanges do indicador e do dedo médio durante a noite. Explicação racional: pretende-se evitar o gesto de levar imediatamente os dedos à cara, pois estes, irrefreados enquanto se dorme e sonha, podem ter tocado em todas as partes possíveis do corpo, as axilas, o rabo, os genitais.

mas aí o bicharoco perigoso já não é o outro, somos nós a sonhar.

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