As mãos sobre a cidade


1. Consideremos a árvore no meio do campo.

L’arbre, le maire et la médiathèque, Éric Rohmer, 1993.

O campo fica a umas centenas de metros do centro de St. Juire, uma aldeia perto de Nantes. Estamos em França, no início dos anos noventa: e estamos num filme de Éric Rohmer. O presidente da câmara (Pascal Greggory) quer construir nesse terreno um grande centro cultural e desportivo, com piscina, biblioteca, videoteca, discoteca, teatro ao ar livre e, claro (necessariamente), um grande parque de estacionamento (para todas as pessoas que o novo centro vai trazer à aldeia em noites de espetáculo) (e que ficará vazio o resto do tempo). A intenção, em primeiro lugar (tudo é transparente), é pôr a aldeia no mapa cultural da região (trazer companhias de teatro de Paris, por exemplo) e, só depois, acudir às necessidades culturais da aldeia. O Ministério da Cultura já aprovou e financiou o projeto, o arquiteto está a trabalhar: tudo se encaminha para que o centro seja construído. Mas o professor da escola primária (Fabrice Luchini) não quer que o centro se faça: prefere o campo com a árvore no meio. (Importa dizer que, segundo o plano, a árvore não ia ser derrubada, mas ia ser engolida pelo centro cultural.) Apesar de algumas das suas razões serem egoístas (o centro vai estragar-lhe o que vê da janela, vai tapar-lhe a aldeia), o fundo do argumento do professor é que o centro não vem responder a uma particular vontade da população, mas dar corpo a uma abstração política (a dos significados e das funções, muitas vezes só económicas, da cultura) e a uma ideia fotocopiada de progresso (um centro igual a centenas de outros construídos em vilas e cidades por todo o país) que passa, quase sempre, pela regulamentação do tempo de lazer: porque são eles, os agentes políticos, quem decide como podemos e devemos ocupar o nosso tempo livre, com que atividades, e também são eles quem decide que outras atividades ou espaços não devem (ou não podem mesmo) existir.

2. No início dos anos 60, a jornalista Jane Jacobs era conhecida por liderar a contestação a um projeto que teria destruído o seu bairro, Greenwich Village: a construção de uma via rápida (um muro de betão) que iria rasgar a baixa de Nova Iorque de um lado ao outro e, com isso, engolir praças e ruas, demolir edifícios e desalojar famílias e negócios. (Esse projeto acabou por ser cancelado em 1971, mais de dez anos depois, muito por causa do seu protesto.) Mas o ativismo de Jane Jacobs organizava-se também contra outro tipo de projetos (menos drásticos) que davam corpo ao pensamento da época em termos de urbanismo (as grandes teorias modernistas e utópicas): a ideia de que os problemas de uma cidade se resolvem com grandes gestos, isto é, com um grande parque verde, um grande bloco de habitação, uma torre, ou (como no filme de Rohmer) um grande centro cultural. Mas para que esses grandes gestos ocupem espaço na cidade é preciso que algo saia: para encher, é preciso esvaziar. E, na prática, o que esses projetos fazem é substituir uma coisa (uma rua ou uma fatia dum bairro) que, apesar dos problemas que possa ter, funciona (já vamos ver que problemas são estes e o que significa isto de funcionar) por outra coisa mais limpa, mais moderna e (sobretudo) mais fácil de perceber: um gesto maior, rectangular, simples. Quando lhe perguntam porque é que quer construir um grande centro cultural em vez de ocupar edifícios vazios no meio da aldeia e de distribuir por eles as suas várias valências (coser as diferentes funções do centro cultural no tecido da aldeia), o presidente da câmara de Rohmer responde que, politicamente, é mais fácil arranjar dinheiro para um grande gesto do que para um conjunto de gestos pequenos: assim, é mais fácil mostrar onde se gastou o dinheiro.

3. Em 1961, Jane Jacobs escreveu um livro chamado The Death and Life of Great American Cities. É um livro zangado, e com razão. Jacobs não percebe porque é que os teóricos do urbanismo (quase todos homens, já agora, fechados nas suas universidades e nos seus gabinetes) insistem em ignorar a realidade que é possível observar no terreno, naquelas ruas e naqueles bairros que funcionam (social e economicamente), e querem resolver todos os problemas da cidade (mesmo aqueles que, na verdade, não são problemas graves, como a degradação de alguns edifícios) com grandes obras e grandes gestos: grandes projetos de habitação, grandes vazios (parques que ninguém quer usar) e grandes ideias centrípetas (como centros comerciais, ou o centro cultural de Rohmer). O problema destes grandes gestos (e a razão principal para eles criarem, à sua volta, bairros que não funcionam) é que eles não estão cosidos na malha da cidade: é raro passarmos pelo meio deles quando andamos a pé. Parecem ter apenas uma grande função, um propósito: separar muito claramente (no mapa) os diferentes usos da cidade (a necessidade de habitação, comércio, cultura e lazer) e criar zonas demarcadas, monotemáticas, para cada um desses usos. (Muitas vezes, trocar lugares por não-lugares.)

4. Comecei a ler este livro assim que ele chegou (que o livreiro também manda vir livros para si) e desde então sou incapaz de andar pela rua sem reparar em certas coisas e sem imaginar uma rua melhor: a começar pela Rua do Paraíso, onde passamos um terço do nosso dia. Façam o mesmo, vocês que vivem em cidades: olhem para as vossas ruas. Para Jane Jacobs, o lugar central da vida nas cidades é o passeio: “o palco de um complexo bailado” de centenas ou milhares de pessoas, umas conhecidas, outras estranhas, todas diferentes, todas ocupadas com a regulação e a segurança do espaço público. Mas isso não significa que essa seja a sua função: isso é, simplesmente, o que elas fazem enquanto vivem as suas vidas; enquanto vão para o trabalho e regressam a casa; enquanto fazem as suas compras ou passeiam os seus cães; enquanto conversam à porta de casa com um vizinho ou um conhecido, enquanto vigiam as brincadeiras das crianças; enquanto se sentam na esplanada de um café; enquanto ouvem a música que sai de uma casa; e enquanto olham para todo este movimento das suas próprias janelas. Jacobs popularizou a ideia dos olhos na rua: esta matriz de muitas pequenas vidas que olham pela vitalidade e pela segurança das nossas ruas. (Ela lembra que um dos principais desafios de uma cidade é fazer com que as pessoas se sintam em casa no meio de estranhos.) Mas para que as pessoas usem a rua e ocupem os passeios, é preciso que haja para onde olhar, isto é, que haja casas novas e velhas, lojas de todos os tipos, espaços de lazer e de cultura, diversidade de populações e de usos: razões várias para a percorrer e outras tantas para parar. É preciso que a rua se mantenha viva a todas as horas do dia: é preciso que funcione. (E é preciso que esses parques e centros cívicos também funcionem como passeios: como tabuleiros de vários jogos.) O que pôr no meio da cidade senão mais cidade? Jacobs responde à excessiva regulação e segmentação defendida por algumas ideias urbanísticas do modernismo com o excesso de vida e de confusão que faz as verdadeiras cidades. É uma ideia semelhante à que Richard Sennett vai investigar em The Uses of Disorder, de 1970: a ideia do caos contra a morte.

5. Estou a misturar (consciente e propositadamente) duas coisas muito diferentes: a cidade de Jacobs e a aldeia de Rohmer. Não são a mesma coisa, como é óbvio. As cidades e as aldeias têm escalas, economias e populações diferentes, têm necessidades diferentes (também culturais) e funcionam (no sentido que temos dado à palavra funcionar) de maneiras diferentes, porque se sustentam em formas fundamentalmente diferentes de utilização do espaço comum e de relações entre as pessoas (a cidade depende da confiança entre pessoas que não se conhecem: está aí a beleza do pacto urbano). Isto para dizer que o problema não é (nem mesmo no filme de Rohmer) o grande centro cultural em si (ou seja, a justaposição, num ou em vários edifícios, de toda a oferta cultural de um determinado bairro ou cidade), mas a ideia de que só um grande centro cultural, só um grande gesto urbanístico e arquitectónico, é capaz de curar os males da cidade (muitos deles teóricos) e, acima de tudo, captar a atenção política e mediática. E aí já não estamos a falar de cultura, mas de mensagem: de oportunismo e de propaganda. Quando o presidente da câmara de Rohmer fala sobre o centro cultural, não fala dos habitantes da aldeia (porque não são esses que o vão usar realmente, como deve ser), mas das pessoas das terras em redor que virão à aldeia por causa do centro cultural: que virão nos seus carros, encherão o parque de estacionamento, verão o espetáculo em cena (é a programação pelo evento, pelo acontecimento imperdível, pela inveja de não ter ido) e, ao fim da noite, voltarão às suas casas, nas suas terras. Se tudo correr bem, acabarão por deixar na aldeia algum do seu dinheiro. Qualquer semelhança entre isto e a lógica do turismo nas grandes cidades portuguesas é pura coincidência. Sabemos (e há vários exemplos disso) que a cultura desempenha um papel fundamental na revitalização de muitas cidades, mas, na maior parte dos casos, esse trabalho é feito pela cultura não-institucional, a dos agentes livres: a dos artistas que ocupam espaços de trabalho em bairros degradados, onde as rendas são mais baixas, para, anos mais tarde, acabarem por ser expulsos dos bairros que eles próprios ajudaram a recuperar, quando as rendas se tornam incomportáveis. Entretanto, a cultura (essa cultura que muitos vêem como desorganizada e menor, a cultura dos que brincam à cultura) já cumpriu o seu papel (já trouxe valor, emocional e imobiliário, a um território) e já pode ser rearrumada noutro sítio: com melhores condições, possivelmente, mas também mais fácil de absorver, de controlar, e de tornar parte da grande mensagem política. 

6. Rohmer parece dizer que um verdadeiro centro cultural (que pode ser um centro ramificado, mesmo descentrado) é como a árvore no meio do campo: um ecossistema, uma coisa orgânica que rebenta do chão. E uma improbabilidade: que resiste, contra tudo e contra todos. Não é uma assinatura num pedaço de papel e uma fotografia no jornal. Voltamos à política e à política do filme: porque Rohmer, ao contrário da maior parte dos colegas da Nouvelle Vague, é um homem de direita, um conservador (de árvores: o professor seria talvez o seu porta-voz dentro do filme). Ainda assim, a última palavra, que é o meio-termo entre o professor e o presidente da câmara (entre fazer nada e fazer tudo), vem pela voz da filha do professor, uma daquelas crianças do cinema francês que aos dez anos falam como adultos. Quando o presidente da câmara lhe pergunta o que é que ela faria daquele campo (que fosse melhor que o centro cultural), ela diz que o abria para as crianças brincarem: um espaço verde para a aldeia. O presidente (e é preciso dizer que ele tem uma grande casa velha, com grandes terrenos) responde (com a estupidez dos adultos) que aquilo é uma aldeia: estão rodeados de verde. Mas todos aqueles campos são de alguém, diz ela: a aldeia devia ter um campo que fosse de todos. A câmara devia dar aquele campo à população tal como está: com a árvore no meio. Abrir e não ocupar: dar o espaço. Como explicar essa ideia à imprensa, aos decisores políticos, ao governo central: como explicar que se fez (apenas) o que era necessário? Eis a questão.

Boa semana,
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