O museu imaginário


[Antes de começar, relembro que até 13 de setembro abrimos apenas no horário da tarde: entre as 14h30 e as 19h. E só cá estou eu. Passem pela livraria a dar-me um olá.]

1. Numa das salas do Museu do Prado, em Madrid (onde fomos na semana passada), está pendurado este quadro:

O arquiduque Leopoldo Guilherme na sua galeria de pinturas em Bruxelas, David Teniers, 1647-1651.

É um dos muitos quadros que se pintaram no século XVII, sobretudo na Flandres, sobre o motivo da galeria de arte: o colecionador e a sua coleção. Antes, pintavam-se os gabinetes de curiosidades (como este), que eram, acima de tudo, compêndios de história natural, científica e humana: espécies da terra e do mar, pedras, minerais, artefactos arqueológicos, moedas, medalhas, coisas raras e (sim, também) objetos de arte (pinturas, gravuras, desenhos, esculturas pequenas). A escala é a de uma saleta, ou a do que cabe num armário. A partir de certa altura, os pintores dedicaram-se a representar apenas os objetos de arte (as grandes telas, os corpos de pedra em tamanho real): nesse momento, o pé-direito explode. (A coleção sai do armário.) As paredes (altas, altíssimas) enchem-se de quadros, sem nenhum espaço entre eles. No chão, mais quadros: ainda por pendurar (onde?). E o dono da casa, o grande curioso, aparece à frente ou ao centro, pequeno, a mostrar a sua coleção, a sua galeria, a sua biblioteca de imagens. Como na imagem acima: é o retrato de um homem (o arquiduque), da sua curiosidade (veja-se a variedade de cores e temas e linguagens da arte) e, talvez o que é mais importante, é um retrato da sua riqueza (estique-se para cima o pescoço: olhe-se tanta acumulação). Não é necessariamente verdade que o arquiduque tivesse uma sala assim, forrada de quadros, em sua casa: podemos estar a olhar para uma ficção, para uma espécie de catálogo, de registo visual da sua coleção. (Copiar e fazer de algo uma miniatura também são formas de posse). Aliás, é possível reconhecer algumas das telas na parede: quadros de Ticiano, Tintoretto, Rafael, Rubens, um quadro do próprio Teniers. (O pintor, ao que parece, é o homem que está junto à mesa com uma gravura na mão e com a cabeça mal encaixada no corpo. Ou seja, além de ser um retrato do arquiduque, o quadro é um auto-retrato a dobrar: do pintor e da sua obra. As funções acumulam-se.) Descobri hoje que outro pintor deste tipo de quadros, Willem van Haecht, que tantas vezes pintou a galeria do mercador Cornelis van der Geest (como neste quadro), chegou a ser o curador dessa mesma coleção. Outra função (mais uma) para o pintor: definir os interesses do mecenas, abrir-lhe a bolsa e o gosto (e depois ficar à porta, a olhar para nós).

2. O livro de André Malraux sobre museus e sobre a tecnologia das imagens e da história da arte (que se chama, como a carta desta semana, O museu imaginário) abre justamente com este quadro de Teniers. Ou melhor, o livro (pelo menos o que tenho em casa, que é a edição portuguesa de 2014) abre com uma reprodução do quadro, com seis por sete centímetros, a preto e branco, terrivelmente pixelizada: são os males do livro pobre. Olhar para esta (fraca) reprodução não é o mesmo que olhar para a imagem acima, é certo, mas olhar para a imagem acima também não é o mesmo que olhar para o quadro que está numa sala do Prado, no meio de vinte e tantos outros quadros: um rectângulo de um metro por um metro e trinta, debruado a madeira de ouro e pintado (que revelação!) a óleo sobre cobre (e garanto-vos que nem a melhor fotografia consegue guardar a luz, a vibração, da cor sobre o metal: o lume atrás da cor).

3. Malraux, ainda. A partir do momento em que entram no museu, as obras de arte perdem o contexto para o qual foram criadas: a estátua no fórum, o altar na capela, o retrato em casa do burguês. Perdem a sua primeira razão de existir: tornam-se objetos de arte, apenas. Mas o que é que ganham? Nesse mesmo momento, passam a fazer parte de uma grande conversa. Agora que muitos museus já têm, nos seus sites, imagens em alta resolução de muitas obras das suas coleções, e agora que projetos como o Google Arts & Culture já congregam muitas dessas imagens, é frequente pegar-se na expressão de Malraux para falar da internet como o verdadeiro museu imaginário: o museu sem paredes, digital, ilimitado, em que todas as imagens (lembrando que são reproduções, mais ou menos falhadas, da coisa em si) conversam, complicam-se, completam-se. Mas Malraux está a escrever numa época em que o museu (e o olhar dos historiadores: porque os museus são quase sempre máquinas de fazer história) se começava a abrir à produção artística de outros povos e outros tempos: os do sul global (que tanto alimentaram, justa ou injustamente, a imaginação dos artistas europeus desde o final do século XIX). Como mostrar o que não tem? Da mesma forma, o museu sabe que não pode levar para dentro de si o vitral de uma igreja ou a estátua talhada na barriga de um monte: a não ser que os destrua. Nesse caso, o que é que acontece à arte que não cabe, que não pode ficar guardada nos velhos museus da Europa? Deixa de ser arte? Era o que dizíamos acima: a facilidade de acesso (a fotografia, a reprodução) traz, necessariamente, uma perda (em detalhe, em textura). Mas a perda pode ser menor que o ganho. Liberto dos limites reais e éticos dos museus de pedra e osso (que são, muitas vezes e ainda, os das feridas do colonialismo), o museu imaginário come com os olhos e com o coração: cabe no armário e ocupa o mundo todo. Tudo, venha de onde vier, esteja onde estiver, ganha o valor da imagem. O museu de Malraux é um retrato da cultura visual de cada um: do que viu, do que ama, do que quer guardar. Um museu sem objetos, só com imagens. Um museu que soma e que expande todos os outros museus. Nos anos vinte do século passado, o historiador de arte Aby Warburg começou um projeto a que chamou Atlas Mnemosyne: uma série de tábuas forradas a pano preto onde ele pregava (cronológica, temática, narrativamente: onde ele punha em diálogo) reproduções de obras de arte (em pequenas gravuras ou imagens a preto e branco), mas também fotografias e recortes de jornal. Imagens da sua cultura, toda. Era uma ferramenta, uma prática de pensar com as imagens: de ver o pensamento da arte através dos séculos. (A coleção regressa ao armário.) A morte de Warburg, antes do final da década, interrompeu o projeto: ele terminou apenas sessenta e três painéis (quase mil imagens) que, há poucos anos, foi possível reconstruir e expor, em Berlim, na Casa das Culturas do Mundo. Quase cem anos depois, o museu das imagens chegava ao museu dos objetos: tornava-se, ele próprio, um objeto.

4. Os nossos primeiros museus herdaram, em grande medida, as coleções privadas dos nobres e das famílias reais. Não sei o suficiente sobre história de Espanha e sobre a monarquia espanhola para perceber porque é que a coleção do Museu do Prado é tão mais representativa da história da pintura europeia (flamenga, italiana, alemã) do que a coleção do nosso Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. (Já agora, comparem os dois sites.) Sei que grande parte do que é hoje a Bélgica esteve sob domínio espanhol durante mais de século e meio, mas isso não explica tudo. (O quadro acima está no Prado porque o arquiduque queria mostrar a sua galeria em Bruxelas ao rei de Espanha, seu tio, grande amante de pintura italiana: para honrar ou para provocá-lo.) Isto para dizer que os museus podem sofrer de dois males: de riqueza ou de pobreza. Quando sofrem de riqueza (como o Prado: que eu adoro, atenção), podem tornar-se listas de obras-primas, que o museu incentiva a percorrer e a carimbar, como num passaporte. Todas as outras, as obras-segundas, são secundárias, menos importantes. Os museus pobres são os que só têm obras-segundas, como o Museu Nacional de Arte Antiga. (Estou a exagerar, eu sei: Bosch, Cranach, Dürer, Nuno Gonçalves, Domingos Sequeira. Mesmo assim.)

5. A partir do início de setembro, os museus sob a tutela do Estado (os museus nacionais) vão passar a ter entrada gratuita ao domingo. Em Lisboa são dezasseis. No Porto (como na maior parte das outras cidades) é só um: o Soares dos Reis. (Há poucos meses, o museu rependurou a coleção permanente: ainda não vi como está, mas é uma boa razão para lá ir.) Podem consultar a lista dos Museus e Monumentos Nacionais aqui. É um começo, mas é pouco. Será que as outras entidades, públicas ou privadas (autarquias, fundações, etc), não podiam fazer o mesmo nos seus museus, integrá-los na iniciativa, contribuir para criar-se a ideia de uma verdadeira rede portuguesa de museus? Porque, um, para os visitantes (convenhamos) é irrelevante quem tem a tutela deste ou daquele museu (um museu é um museu), e, dois, há muitas outras formas de essas entidades compensarem a perda de um dia sem cobrar entradas: isto é, as pessoas que quiserem deixar dinheiro no museu têm várias formas de o fazer (que é como quem diz: Exit Through the Gift Shop). O dever do Estado (assim como, na verdade, o das autarquias e das fundações que recebem financiamento público) é arranjar uma solução para todas aquelas pessoas que não têm dinheiro para deixar no museu, nem sequer para o preço de uma entrada: e que não podem deixar de ir por causa disso. Há algumas semanas, quando isto dos domingos se anunciou, li alguém que questionava o mérito da iniciativa, já não sei onde, dizendo, basicamente, que ninguém vai a museus: o benefício real seria mínimo. Mas como é que esperamos que as pessoas vão a museus (que façam disso um hábito) sem nunca terem ido a um? (E o mesmo vale para os filmes antigos, para o teatro, para a dança, para a ópera, para um concerto de música clássica, erudita, não importa: para todas as manifestações artísticas que muitas pessoas assumem, desde logo, que não são para elas. Talvez porque raramente as vêem na televisão aberta, mas isso já é outra questão: Malraux estaria de acordo.) Como é que se cria um hábito, que é o mesmo que dizer: como é que se cria um público? Não basta abrir a porta, mas começa por aí, por ser o Estado, e não a pessoa que paga o bilhete, a assumir o primeiro risco: o belo, o perigosíssimo risco de nos pôr, a nós e à arte, frente a frente, na mesma sala.

6. O CCCB, em Barcelona, mostra neste momento e até outubro uma exposição dedicada à obra e (sobretudo) ao legado do Marquês de Sade. Fomos lá no nosso último dia de férias. (A entrada é livre aos domingos à tarde.) A exposição é interdita a menores de dezoito e isso permite-lhe dizer o que tem de dizer e mostrar o que tem de mostrar: sem concessões. (Por exemplo, estão expostas várias fotografias de Robert Mapplethorpe, daquelas mais explícitas, e, tanto quanto sei, ninguém se agarrou às pérolas.) O texto que acompanha a exposição diz que os escritos de Sade «podem interpretar-se como uma filosofia da liberdade, mas também como uma filosofia do mal». Como é que se conta essa história, a da liberdade e do mal, que é a história dos herdeiros do marquês? A exposição mostra as gravuras feitas para as primeiras edições dos livros de Sade e as ilustrações das sucessivas edições até à segunda metade do século XX; mostra obras dos modernistas filhos de Sade (Man Ray, Dalí, Bataille) e dos filhos desses modernistas (desenhos do Švankmajer!); mostra excertos dos filmes de Buñuel e Pasolini; mostra o teatro de Peter Weiss, Mishima, Angélica Liddell e Albert Serra, filmado, fotografado e em livro; mostra desenhos vários, mais ou menos eróticos; fotografias, idem; páginas de comic books; performances gravadas em vídeo; entrevistas; instalações sobre violência, sobre abuso sexual, sobre pedofilia na igreja; e (quase no fim) mostra uma parede só com dezenas de capas do mesmo tabloide: como um muro de exclamações. A pergunta era: onde é que acaba a liberdade e começa o mal? Mas também: com que objetos ou com que imagens se faz essa pergunta? (Como é que um museu pobre, isto é, um museu sem obras-primas, vence a sua pobreza?) Será que os objetos valem (sempre) mais do que as imagens, do que as ideias? E quando os objetos estão fechados no palácio do rei, algures, noutra cidade, noutro país, longe da maior parte de nós?

Boa semana,
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