O Festival “Pela Vida Contra o Nuclear” realizado a 21 e 22 de janeiro de 1978 nas Caldas da Rainha foi um momentos mais altos da luta ecologista e anti-nuclear em Portugal. O projecto da construção de uma central nuclear em Portugal foi definitivamente (?) abandonado em 1982 depois de vários anos de forte contestação popular, em que diversos grupos e militantes libertários estiveram envolvidos.
Dois anos antes, a 15 de março de 1976 os sinos tocam a rebate na pequena povoação de Ferrel, no concelho de Peniche, chamando a população a protestar contra os trabalhos iniciais para a construção duma central nuclear junto á localidade.
O projecto já vinha de trás, dos tempos do marcelismo, e foi retomado após o 25 de Abril de 1974.
“A 15 de Março em 1976, os 1500 habitantes de Ferrel (…) conseguiram impedir o avanço dos trabalhos. Esta manifestação marcou o início de um processo que culminaria com a desistência do projecto, tendo-se realizado até 1978 outras manifestações que contaram com o apoio de organizações ambientalistas internacionais.
(…) Por volta das 8 horas da manhã do dia 15 de Março de 1976, os sinos da capela de Nossa Senhora da Guia soaram a rebate. D. Crialmina, agricultora já falecida, tocou sem parar. Nem mesmo quando o badalo se desprendeu ela parou. Pegou nele e continuou a dar pancada no sino.
A população da aldeia e das povoações vizinhas acorreu, em força, juntando-se no largo da igreja, armada com todo o tipo de alfaias agrícolas. Enxadas, foices, sacholas, forquilhas, ancinhos, picaretas… Tudo servia para travar o ‘monstro’. Foi dali que aquele aglomerado de pessoas – cerca de duas mil – marchou em direcção à serra, mais propriamente aos baldios de Moinhos Velhos, onde decorriam trabalhos de prospecção com vista à instalação de uma central nuclear. A missão era pôr fim a essas pesquisas.
Mural em Ferrel
“Uns iam a pé, outros de motorizada ou montados em carroças de burro, tractores, camionetas ou até em cima de debulhadoras”, conta António Júlio Santos (antigo presidente de Junta), que morava no largo da igreja e que, assim que ouviu o sino, acorreu ao local. A viagem até ao alto de Moinhos Velhos, um trajecto com cerca de quatro quilómetros, demorou “mais de três horas”. “Aquilo era quase só areia. Altos e baixos. Não havia um caminho digno desse nome”, acrescenta, frisando que os trabalhos decorriam em “grande secretismo”. Nesse manhã, Tadeu Simões, já estava a trabalhar no campo quando ouviu o sino. “Larguei tudo e vim a correr”, recorda. Sem saber muito bem “ o que se estava a passar”, acompanhou a multidão, longe de pensar que iria participar num “acto heróico e corajoso do povo de Ferrel, a bem do País e da democracia”.
(…) O protesto popular foi imortalizado numa música. Em “Rosalinda” Fausto canta : “…e em Ferrel, lá para Peniche, vão fazer uma central que para alguns é nuclear, mas para muitos é mortal”.
António José Correia, (depois presidente da Câmara de Peniche), era, na altura do protesto, colaborador do jornal local “O Arado”. Recorda que a contestação à central nuclear juntou centenas de pessoas que “iam munidas dos seus instrumentos de trabalho, uns iam de trator, outros de bicicleta e outros de burro”.
Apesar do aparato , da presença no local de centenas de pessoas e de muitos guardas da GNR, o protesto contra a central nuclear em Ferrel decorreu sem incidentes; “Não aconteceu nada, houve respeito mútuo. Foi uma manifestação pacífica”.
António José Correia diz que a manifestação não teve o apoio de partidos políticos ou de associações ambientalistas. Foi genuinamente popular. Um “não” ao nuclear que se fez ouvir. A central de Ferrel nunca saiu do papel.” (aqui)
Dois anos depois, quando se começava a falar, de novo, do projecto de uma central nuclear, realiza-se nas Caldas da Rainha a 21 e 22 de Janeiro de 1978 um Festival “Pela Vida contra o Nuclear” que juntou cerca de 3 mil pessoas, superando todas as expectativas dos organizadores.
Neste protesto, que contou com um espetáculo musical com José Afonso, Fausto, Vitorino, Sérgio Godinho e Pedro Barroso, entre outros, estiveram presentes diversos anarquistas (a presença libertária nos movimentos ecologistas era grande na altura), desde A Ideia, à Voz Anarquista ou ao Satanás (um grupo de Almada, que editava um pequeno jornal) a colectivos dispersos pelo país.
Numa edição especial de “A Ideia”, no n. 9 referente ao Inverno de 1977/1978, toda ela dedicada à relação entre Ecologia & Anarquia, destaca-se a luta anti-nuclear internacional e pode ler-se:
“Apesar dos Livros Brancos, eternamente anunciados, não é apenas Ferrel que está em causa. É talvez o Alentejo. É talvez a Bacia do Zêzere, onde a existência de amplas zonas militarizadas (Tancos, etc.) e uma população sem grande experiência de contestações e lutas, permitirá pensar aos políticos e tecnocratas que não irão ter grandes oposições sociais à concretização dos seus projectos…. Pela nossa parte esperamos, nem entendido, que se enganem redondamente”.
Curiosa é a noticia do jornal “Voz Anarquista” sobre este Festival. O jornal esteve presente e numa crónica de primeira página não assinada (Francisco Quintal?) o seu autor mostra-se solidário e galvanizado peloa forma como o protesto decorreu e pelo número de pessoas que acorreu às Caldas, mas não esconde as críticas à “desorganização” existente, nem à falta de espaços onde todos coubessem.
“Caldas da Rainha
Um festival pela vida contra o nuclear decorreu e deve continuar
A pequena cidade de Caldas da Rainha, dentro da sua especial característica que faz dela, desde sempre e ainda hoje, uma jóia da Arte aliada às belezas naturais em que os habitantes conscientemente se integram, viu-se positivamente assaltada por uma multidão de pessoas cujo número ultrapassou e muito o habitual dos seus habitantes. Como todas as terras que vivem de um passado que, até certo ponto, as adormece à sombra de recordações, acordou estremunhada na manhã de sábado, 21 de Janeiro, por ecologistas de todas as tendências que vinham ali e em toda a região até Ferrel, já na orla do oceano, lançar forte e eloquentemente o seu protesto contra o Nuclear que uma ciência, a soldo do capitalismo, explorada por governantes sem escrúpulos e por homens ávidos de negócios, pretende justificar frente à natureza que se vê, de dia para dia, desfalcada das suas belezas, da suas virtudes e da sua seiva. Mas, os visitantes, conforme iam chegando viam- se aprisionados naquelas ruas estreitas, e em pouco tempo o programa, com tanto carinho elaborado, viu-se alterado, com o seu primeiro número, dedicado às crianças, posto de parte, por dificuldade de acomodação em que as crianças pudessem reunir-se e trabalhar, dando provas do seu talento natural, no que elas, por vezes, ultrapassam os adultos. E assim se passou naquela linha manhã, constatando-se que as Caldas não tem locais para abrigar mais que algumas centenas de pessoas. A Comissão do Festival não calculou que os números de visitantes fosse tão grande, pois de contrário teria de erguer, embora provisório, que depois seria definitivo, um parque, meio ar livre, coberto por um alpendre ornamentado onde coubessem, não centenas, mas os milhares de pessoas que ali acorreram. O que nos encheu de satisfação, e considerámos muito belo, foi o crescer daquela multidão que ia chegando para a realização do eloquente protesto de um povo que quer ser livre e são. Como dissemos, os trabalhos afinal só começaram depois das 14 horas.
Mas tudo, com ar de feito à pressa, programas negligenciados, tudo última hora, apressado em ar de família pouco meios, com poucas cadeiras e bancos, e instalação de um serviço de alimentação macrobiótica, no ar, em exígua instalação. Bem, membros da Comissão apareciam, a cada passo surgiam, cheios de gentilezas, dando facilidades, o que não seria preciso, se tudo já estivesse previsto e realizado. Consolámo-nos com o ambiente social em que todos se mostraram de um optimismo, duma confraternização encantadora. Nessa tarde começaram a instalar-se bancas de venda e distribuição de livros, folhetos e cromos e autocolantes, não só de ecologia mas de várias tendências políticas. Todos compreendendo a inter-ajuda, todos muito cheios do espírito de tolerância. «Voz Anarquista» montou a sua banca e ali fez o seu sucesso, nesse dia e no domingo. Viemos de lá com a consolação de que contactámos com gente que ficou surpresa de nos ver, que nos acarinhou, e com a clara visão de que a Anarquia está na alma do povo e que é indispensável gritar, sem rebuços esta palavra mágica, que os órgãos diversos do Poder – meios de difusão e meios de repressão – insistem em lançar na sombra. «A Ideia» – órgão de um grupo incansável de propaganda, ali montou banca, a nosso lado. Outras tendências políticas e sociais. E, vá lá, devemos dar primazia aos grupos ecologistas, aos macrobióticos, cujas bancas se viram quase assaltadas por compradores, ávidos de novidades. Reuniões destas, como constatámos, fazem falta. Para substituir as estúpidas embora tradicionais feiras regionais, exclusivamente votadas a um negócio sórdido, devia havê-las mês por mês. Festivais como este, deslocando o seu centro de concorrência e sempre com o mesmo objectivo: a defesa da Natureza, posta em risco pelo sistema capitalista que não olha a meios para atingir os seus fins. A presença destes milhares de pessoas nas Caldas foi um mar de confraternização cheio de grandes possibilidades. O povo não é aquela mola que os políticos pretendem moldar aso seus interesses; o povo vem até nós se nós formos ao seu encontro. O que é preciso é que as Comissões, previamente, realizem mais trabalho, não deixando para a última hora o trabalho entregue aos concorrentes. Também notámos em muitos dos concorrentes uma certa tendência para admitir uma primitiva acomodação ao meio. O que é preciso é um evolucionar dos meios, admitindo uma forma presente e não uma forma passada. Queremos a natureza elevada em todo o seu prestígio, dentro de um progresso contínuo e não de um regresso. Portanto, salientaremos que o que deu explêndida vida ao certame foi a própria multidão que acorreu.
No domingo, de manhã, Caldas ficou deserta, entregue ao seu mercado e às suas lojas de curiosidades artísticas, velha-menina remirando-se na sua própria beleza. Os ecologistas de todas as tendências foram a Ferrel lançar um eloquente protesto. É que ali, já no tempo de Salazar, foram construídos os alicerces de uma estação nuclear. E como a revolução de Abril, dos militares e de um povo enganado, mudou apenas de rótulos, mas continuou e respeitou as realizações fascistas, Ferrel tem sido objetivo da tentativa da prevista estação nuclear, o que prova que, quer no regime fascista, quer nos sucedâneos rotulados de democráticos e «socialistas» ou «comunistas», o regime capitalista sobrevive sempre. Em Ferrel, só a presença da multidão bastou para alastrar o eco de um protesto que não deve morrer. À tarde, voltámos às Caldas. As bancas. Ternura, fraternidade entre todos. A desorganização dos promotores continua à vista. Não há uma sala para conferências onde a multidão caiba. Caldas ainda trás em cima de si os vestidos justos dos séculos que já lá vão. Tem magníficos edifícios que ameaçam ruína e desmoronamentos. Falta-lhe um parque para dez ou vinte mil pessoas. O seu jardim-parque é uma maravilha. O Museu Malhoa é um modelo em qualquer parte do mundo. Visitando-o, uma comoção muito profunda, quase lacrimosa, invadiu-nos. Mas Caldas, ainda dorme. Deve acordar. Restaurar forças. Tornar-se cidade para toda a gente que vem de fora. Deixar de encolher-se em si própria. Nessa noite vieram falar uns oradores expressamente convidados. Falaram muito. Poucos os ouviram. A grande massa ficou de fora. O certame, que nos comoveu, acabou cedo, com música e canto. Zeca Afonso, com o seu gabão, modesto, simples, ali esteve. Vitorino, sempre libertário, também. Outros grupos igualmente. Apesar dos defeitos, o protesto valeu. É necessário que continue, noutras terras, enquanto Caldas se abre mais. Para uma vida que merece a pena viver. Por uma estrada nova que leva ao país da Anarquia.
(Voz Anarquista, nº 28 – Janeiro/Fevereiro, 1978)
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