[Espanha] O anarquismo deixa de ser utópico em Barcelona


Por Javier Memba | 19/07/2023

Em outro 19 de julho de 1936, há 87 anos, Barcelona é uma cidade em que as calçadas e um bom número de edifícios começam a mostrar traços da batalha travada em suas ruas. As pessoas correm aterrorizadas pelas calçadas. Os lojistas fecham seus negócios. Ouvem-se trocas de tiros. Em seguida, o tiroteio e, com exceção dos combatentes, não há mais ninguém nas ruas. Os poucos transeuntes caminham junto à parede para evitar as balas que voam.

Em quase todas as praças onde o levante do Exército da África não triunfou – embora ainda não tenha conseguido atravessar com a maior parte de suas tropas para o continente, mas teve o apoio de boa parte dos comandantes deste lado do Estreito – foram travadas batalhas para tomar os quartéis dos golpistas. O movimento libertário (CNT-FAI-JJLL) é a força predominante no movimento dos trabalhadores espanhóis. Somente a CNT, seu sindicato, conta com um milhão de militantes em uma Espanha com 24.693.000 cidadãos. A tendência à acracia, que há muito tempo é atribuída ao caráter espanhol, é inegável diante desse número. Também é inegável que os libertários desempenharam um papel decisivo nas primeiras batalhas travadas contra os rebeldes contra a legalidade republicana.

Mas em Barcelona os anarquistas foram decisivos. Eles acabaram com os rebeldes ao colocar sua revolução em movimento. De fato, o próprio presidente da Generalitat, Lluis Companys, reconheceu isso no dia 21, quando recebeu os delegados anarquistas após quase 30 horas de luta: “Antes de mais nada, devo dizer-lhes que a CNT e a FAI nunca foram tratadas como mereciam devido à sua verdadeira importância. Vocês sempre foram duramente perseguidos; e eu, com muita dor, mas forçado pelas realidades políticas, que já estive com vocês, fui obrigado a confrontá-los e persegui-los. Hoje vocês são os senhores da cidade e da Catalunha, porque somente vocês derrotaram os militares fascistas, e espero que não se importem se eu os lembrar neste momento que não lhes faltou a ajuda dos poucos ou muitos homens leais do meu partido, dos guardas e dos mozos (policiais catalães).

“Mas a verdade é que, perseguidos duramente até anteontem, hoje vocês derrotaram os militares e os fascistas. Portanto, não posso, sabendo como e quem são vocês, usar uma linguagem que não seja de grande sinceridade. O senhor venceu e tudo está ao seu alcance; se não precisa de mim ou não me quer como presidente da Catalunha, diga-me agora, e eu me tornarei apenas mais um soldado na luta contra o fascismo”.

Mas a verdade é que o republicanismo, tanto espanhol quanto catalão, desconfia do anarquismo. Companys dirá o que todo mundo sabe: a república os perseguiu com a mesma ferocidade que a monarquia. A república de escritores como Manuel Azaña, que em 1933 ordenou a repressão do levante anarquista de Casas Viejas, sem “feridos ou prisioneiros, com tiros na barriga”. A república que proíbe que as cópias de Las Hurdes, tierra sin pan (1933), o filme em que Luis Buñuel denuncia a situação dramática dessa cidade da Extremadura, incluam o nome de seu produtor, Ramón Acín, porque ele era um conhecido anarquista. Na melhor das hipóteses, para os republicanos dos tiros na barriga, os libertários confundem Acracia com erros de ortografia e a gratuidade das coisas com a ordem anarquista.

Para aqueles que não conseguiram conter os “facciosos”, como eles também chamam os franquistas, o empirismo de Kropotkin e Eliseo Reclus não conta; muito menos a pedagogia livre e racionalista de Francisco Ferrer Guardia e sua Escola Moderna. Como falar com os autoritários da ordem antipatriótica que, sendo natural, como a força da água ou do vento que move o moinho, não precisa de autoridade para mantê-la, mas de apoio mútuo. Como convencer toda essa gentalha, que vive do parlamentarismo, de que há milhares de anarquistas que entenderam que a redenção do proletariado está na cultura, não na política, e que souberam escapar do magnetismo nefasto da taberna para frequentar as aulas noturnas do Fomento das Artes e centenas de ateneus libertários, que os anarquistas vêm abrindo em todo o mundo desde que são lembrados.

Mas hoje a história decidiu sorrir para aqueles que sempre perdem e parar naqueles pelos quais ela nunca passa: os sem amos, os sem deus… os anarquistas. Porque em um 19 de julho como o de hoje, 1936, em Barcelona, o anarquismo deixou de ser utópico. É a segunda vez na história da humanidade – a primeira foi na Ucrânia de Nestor Makhno – e tudo parece indicar que será a última.

Assim, hoje nasce a Barcelona em que até mesmo os burgueses usarão o macacão azul Mahon dos trabalhadores da Espanha; a Barcelona em que todos serão tratados como “tú” e na rua, nos alto-falantes instalados para esse fim, A las barricadas, Hijos del pueblo e o resto das canções e hinos anarquistas serão ouvidos constantemente. A Barcelona que entusiasmaria o trotskista inglês George Orwell, que correria para lá para se juntar à milícia trotskista do POUM, a Barcelona cuja memória o inspiraria em Homenagem à Catalunha (1938).

Entre os anarquistas, tudo se resumia a reuniões, discussões apaixonadas sobre como realizar a revolução e, ao mesmo tempo, vencer a guerra, que ninguém imaginava que seria tão longa. O povo de Barcelona, alheio a essa inquietação, sofre de insônia. Eles sabem positivamente que será derramado muito mais sangue do que já foi derramado: o sangue de que todas as revoluções precisam para mudar o curso da história. “O terror nada mais é do que uma justiça rápida, severa e inflexível”, escreveu Robespierre. E, de fato, o que teremos aqui será um terror comparável ao terror empreendido pelo Comitê de Salvação Pública na França na época da Revolução. Ambos os massacres nada mais foram do que o derramamento de sangue que as revoluções exigem.

O republicanismo e os partidos marxistas – com exceção dos trotskistas do POUM, aliados dos libertários – querem, antes de tudo, vencer a guerra e adiar a revolução pelo tempo que for necessário. Assim, no dia 21, quando a CNT forçar a Generalitat a criar o Comitê Central de Milícias Antifascistas, Companys concordará, em grande parte, em tirar os anarquistas do caminho e continuar a usá-los como bucha de canhão na frente e como força repressiva na retaguarda. Porque o Comitê não era responsável apenas pela organização e administração da coluna Durruti, que em sua marcha para a frente de Aragão criaria coletivos libertários nas cidades por onde passasse, mas também pela repressão em Barcelona, onde seria tão brutal quanto em todas as retaguardas do resto da Espanha: os observadores internacionais ficariam chocados com a fúria com que os espanhóis se matavam uns aos outros.

São como aqueles que hoje se vangloriam de sua ignorância, convencidos de que a sabedoria é o fascismo, animais com a pistola na mão e sem outro argumento que não seja a exibição dessa ferramenta nos passeios e nas apreensões. De forma mais ou menos sub-reptícia, era assim que os anarquistas eram procurados pela classe política, “os otários, os profissionais da república e do parlamentarismo”, como os libertários os chamavam.

Já no início da eclosão revolucionária, que em um dia como hoje impediu o golpe de Estado em Barcelona, os stalinistas do PCE-PSUC, apoiados pela Esquerra Republicana de Catalunya, o Estat Català e a UGT, seguindo instruções expressas do Kremlin, embora alegando salvaguardar a ordem republicana, queriam desarmar a CNT-FAI, entrincheirada no Comitê Central de Milícias Antifascistas da Catalunha. Sua hora chegou em maio de 1937. Foi então que, após um incidente na companhia telefônica, a repressão comunista ao movimento libertário foi desencadeada, pondo fim àqueles nove meses em que o anarquismo deixou de ser utópico na Catalunha e em boa parte de Aragão.

José Peirats, um dos mais destacados confederados, foi também um dos mais esclarecidos: sempre se opôs ao colaboracionismo da CNT com os governos da República. Para aqueles que gostavam do caos, essa era a situação predominante na Catalunha naqueles dias, quando o mais próximo de um governo era o Comitê Central de Milícias Antifascistas. É assim que a história é escrita.

Fonte: https://www.zendalibros.com/el-anarquismo-deja-de-ser-utopico-en-barcelona/

Tradução > Liberto

agência de notícias anarquistas-ana

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Ricardo Silvestrin