Instituto de Estudos Libertários entrevista Michel Suárez


Julho de 2023

Michel Suárez

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Quem é Michel Suárez?

Saber quem sou! Oh, supremo ideal grego do autoconhecimento, imensa tarefa de toda uma vida! Bom, do ponto de vista biográfico, nasci em Pola de Siero, num vilarejo das Astúrias, Espanha, e morei, entre outros lugares, no Rio de Janeiro durante quinze anos. Do ponto de vista, digamos, espiritual, sou uma pessoa incapaz de suportar o cinismo e a brutalidade radicais desta época miserável; por cima de tudo, tento compreender. Minha máxima aspiração é passar pela vida como um ser humano honesto, amável e amigável. Pode parecer pouca coisa, mas a meu ver é todo um programa de vida.

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Quando e onde se deu seu encontro com o anarquismo?

Meu primeiro contato com “a ideia” foi nos livros. Um bom dia, por casualidade, caiu nas minhas mãos um opúsculo de Pedro Gori, onde este italiano da velha guarda propunha uma crítica social com a qual simpatizei de imediato. Os princípios de solidariedade, apoio mútuo e camaradagem ressoavam muito mais profundamente com meu temperamento que as asperezas teóricas do marxismo e sua praxe mecânica e disciplinadora. Depois, comecei uma procura incessante de textos anarquistas clássicos, Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Reclus, etc., para acabar desembocando num território mais abrangente de autores situados longe do anarquismo, às vezes em contra mesmo, que exerceram sobre mim uma enorme influência. Alguns deles poderiam, inclusive, ser considerados reacionários. Pensar que uma escola ou uma tradição, neste caso o anarquismo, tem o privilegio da lucidez é um erro funesto.

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Você teve uma experiência com os zapatistas, certo? Poderia nos falar um pouco sobre isso?

Na verdade, tive duas. A primeira, pouco depois da posta em cena do EZLN, em 1995, e a segunda em fins do século passado. Minha experiência nas comunidades zapatistas foi, e não podia ser de outra forma, limitada e efêmera. Fui lá em condição de observador internacional, um papel que, se bem me permitiu examinar in situ o funcionamento geral das comunidades, não era o mais idôneo para ter uma ideia profunda do movimento. Temos que levar em conta que fiquei apenas um mês e meio de cada vez, um tempo obviamente escasso. Além disso, estava a lógica distância, cultural e, ocasionalmente, linguística, com a população local, acostumada a um constante desfile de estrangeiros que iam e vinham. De qualquer maneira, o ensino mais valioso que tirei dessas duas estadias foi a necessidade de reformular a democracia partindo de espaços não submetidos pela lógica da modernidade capitalista (racionalismo, produtividade, custo-benefício, etc.), no caso dos zapatistas as ancestrais formas organizativas indígenas. Como podemos estabelecer uma organização social, econômica e política que seja igualitária sem sufocar a autonomia individual? O que podemos aprender de nossa própria tradição? Que elementos dessa tradição podem nos servir para defender a coletividade dos ataques do Estado e da oligarquia, preservando ao mesmo tempo a vontade de autogovernar-nos? Essas são as perguntas que os zapatistas se colocaram antes de se decantar pela insurreição; suas respostas, suas experiências, certas ou erradas, constituem um tesouro para os movimentos de emancipação social.

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Quais são as suas principais fontes intelectuais de inspiração?

Oh, muitas! Diderot, John Ruskin, William Morris, a tradição grega, especialmente Lucrécio, Horácio, Luciano e Sêneca, Ivan Illich, Lewis Mumford, George Orwell, Jacques Ellul, Günther Anders, Nichola Chiaromonte, Christopher Lasch, Wright MacDonald; e nas fileiras “reacionárias”, amo Chateaubriand, Baudelaire, os Goncourt, Georges Bernanos, Paul Valéry e Léon Bloy, entre outros muitos. Em todo caso, minhas maiores influências intelectuais foram, sem dúvida, Simone Weil e Cornelius Castoriadis.

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Nos fale sobre o seu recente livro “De re vestiaria. Defensa del saber hacer de los maestros sastres artesanos y elogio del arte de vestirse para guia y disfrute de elegantes, seguidos de abundantes comentários críticos sobre su decadência em la era del narcisismo y las máscaras”. De que forma ele se associa e complementa os seus interesses anteriores?

Não é que os complemente, é que são os mesmos! Trata-se de elaborar uma crítica da sociedade industrial de um ponto de vista insólito, insuspeitado, neste caso a elegância artesanal. Nos nossos dias, falar do terno, do vestido, entendido num sentido amplo, remete à frivolidade, à inanidade, à vaidade. Primeiramente, gostaria de deixar claro, com meu adorado Oscar Wilde, que odiaria que alguém pensasse que tenho algo contra a vaidade. Muito pelo contrário, neste ensaio reivindico a vaidade como uma forma contida de amor próprio, e condeno severamente seu bastardo, o narcisismo, exacerbado hoje pela calamitosa revolução digital. Dito isto, afirmo que vestir-se é uma bela arte, e, como toda bela arte, é linguagem, pedagogia, símbolo e speculum mundi, um espelho do mundo que devolve uma imagem precisa das engrenagens do capitalismo contemporâneo. Este é, a meu juízo, o aspecto mais importante da arte de vestir-se. Não podemos esquecer que foi no setor têxtil onde se introduziram as inovações mais radicais da sociedade industrial, o âmbito onde se consolidaram o racionalismo, a produtividade e mecanização. No plano econômico, é impossível compreender o selvagem e o dogmático assalto ao sistema público, melhor dito, estatal, de saúde ou a gestão da passada pandemia sem levar em conta o conceito de “moda rápida”, “circuito curto” ou “just in time”, que imperam na indústria da moda graças ao decisivo salto em tecnologia de produção de finais dos anos oitenta.

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Por outra parte, a função comunicativa das roupas é a mais obvia. Basta chegar num lugar vestido de uma determinada maneira para que os presentes se formem uma imagem, não importa se falsa ou exata, de você. A vestimenta é um código de signos que emitem informação. E além de linguagem, também é pedagogia, porque não existe um âmbito cotidiano mais propício para a prática da imaginação, da criatividade e da fantasia. Neste sentido, se vestir de um jeito, digamos superior, demanda olhar pra atrás, conhecimento dos códigos clássicos, e para dentro, introspeção, autoconhecimento. Os códigos clássicos, como Baudelaire lembrava a respeito da poesia, são princípios gerais que orientam sem oprimir; permitem o desenvolvimento do talento sem esmagar a fantasia. E são clássicos porque superaram a mais dura das provas: a passagem do tempo. Feitos de discernimento, estes códigos nos dizem que é mais conveniente em contextos urbanos ou de lazer, que tipo de tecido é idôneo para um passeio pelo campo ou pela cidade, ou o que usar nos dias mais calorosos nos trópicos. Estes códigos constituem essa “voz desconhecida que não pertence a ninguém e que surge dos séculos e dos povos”, na definição, esplêndida, de Chateaubriand.

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Então, o estudo dos códigos clássicos é recomendável?

Acho evidente, tanto para se vestir quanto para a prática de qualquer bela arte. Hoje, ignoramos por completo a construção de um terno e ninguém se pergunta por coisas como a morfologia das roupas, o ajuste de um paletó, a largura das lapelas, a altura da calça ou os centímetros de bainha, expressão precisa do espírito e do temperamento de quem o usa. Quem domina as leis gerais da forma na arte de se vestir? Mas, existem leis gerais, pensarão muitos? Com certeza, e como acontece em toda bela arte, estas leis são preceitos moldados pela passagem do tempo, a reflexão e a experiência de quem nos precederam. Em outras palavras, são filhas do discernimento. Graças a este discernimento, feito de múltiplas contribuições – patrícias e plebeias-, as roupas que integram este cânone clássico demonstraram ser as mais aptas para as sinuosidades de nossa musculatura, de nossa irregular complexão, sem perder de vista as atividades e os contextos para os quis foram pensadas. Acaso podemos achar que estes códigos que atravessaram o tempo de forma satisfatória e benéfica são fruto da arbitrariedade ou a casualidade? De jeito nenhum! Falando sobre arquitetura, Diderot afirmou que um prédio é belo quando possui solidez e se adapta a aquilo para o que estava destinado. Mas o verdadeiramente importante na hora de edificar é a influência dos costumes. Essa era, segundo o gênio francês, a verdadeira clave.

Também gostaria lembrar que se vestir mantém uma estreita relação com o simbólico. Como disse Cassirer, o ser humano é, perante tudo, um homo symbolicum, uma dimensão praticamente extinta nesta era da inteligência de máquinas, reduzida apenas ao simbolismo nefasto do patriotismo (bandeira) e o militarismo (uniformes).

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Que importância tem este simbolismo em termos políticos? Esta crítica é unicamente aplicável à direita e às classes dirigentes, ou também serve para a esquerda?

A esquerda política constitui um campo abonado para a crítica, e não só por ter aceitado as regras do jogo da sociedade industrial (progresso, bem-estar, produtividade, aceleração, desenvolvimento), participar da mistificação eleitoral, pontificar sobre o “bom uso da tecnologia” capitalista ou pintar de verde a devastação da biosfera. Amarrada ao preconceito, a esquerda, sem exceção, tem apostado pela estética mendicante em nome da comodidade, com os monstruosos resultados por todos conhecidos. Essa injúria com os autênticos mendigos não parece incomodar a nenhum “antissistema”. Não é absolutamente encantador que não possamos distinguir aos novos donos do mundo (Zuckerberg, Brin, Page) de um militante? Esta identidade estética entre os mandachuvas das corporações da alta tecnologia e a “esquerda antissistema” é um assunto sem a menor importância para a militância esquerdista, encantada com esta civilização do “individualismo” que fabrica zumbis e internautas em série. Que necessidade tem um internauta do espaço público? Nenhuma. E se não tem nada que objetar à digitalização da existência, por que deveria condenar os farrapos dos Zuckerberg e companhia?

Paradoxalmente, hoje são eles, os mandarins de Silicon Valley, quem reivindicam uma transformação radical do mundo. Eles são os verdadeiros revolucionários. São estes tipos obscuros, crápulas, antissociais e sinistramente gananciosos, saídos, literalmente, de uma garagem, quem nos convenceram da necessidade de mudar constantemente o mundo. Mas o que pode saber do mundo e de suas complexidades quem passou, literalmente, sua adolescência numa garagem? Que valor de exemplo tem um homem com o nariz grudado numa tela? Uma coisa é certa: suas conquistas são indiscutíveis; conseguiram configurar a existência de acordo a sua radical distopia digital, e nesse processo primeiramente deixaram claro que o gosto e a delicadeza estética são perdas de tempo, que distraem do verdadeiramente importante: faturar e digitalizar as almas, e tudo em shorts e chinelo. Não é delicioso?

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Você menciona igualmente a necessidade de entender a arte de se vestir como um jogo. Isso nos leva a Schiller…

Sim, a Schiller e ao Homo ludens de Huizinga. De seguirmos os conselhos do romântico alemão, quem afirma que o ser humano só é verdadeiramente humano quando joga, e só começa a jogar quando se atavia, não poderíamos, cada manha e a imitação dos pintores, fazer do nosso corpo uma tela para a prática da sensibilidade? Que melhor forma de encarar a tarefa de se vestir que entendê-la como um jogo cotidiano sem ganhadores nem perdedores? No caso da cor, por exemplo, poderíamos escutar a Baudelaire, quem nos fala do entendimento entre os diversos tons, da possibilidade de fusioná-los ou contrastá-los em função do temperamento e do gosto. Por que desprezar essa íntima relação que suspeitava Baudelaire entre as cores e os sentimentos? Seguindo com o francês, não poderíamos afirmar que o homem delicado no vestir é capaz de compor um conjunto razoado em que todos os efeitos contribuem para um efeito geral? Conseguir um efeito geral razoado, essa a clave da arte de vestir-se.

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Seu livro é ao mesmo tempo uma história e uma defesa do código clássico de vestimenta, escrito de um posicionamento libertário. A revolução não é inimiga da elegância?

Se falamos de “revolução”, a coisa se complica. “Revolução” é um termo impreciso e obscuro demais; pode significar qualquer coisa e seu contrário. No meu ensaio, com objetivo de esclarecer o que entendo por “revolução”, além de todos os amigos que já citei, decidi me concentrar num episódio histórico concreto, a Comuna de Paris, mais concretamente no Manifesto da Federação de Artistas, comandada pelo gigante Gustave Courbet, escrito por um talentoso poeta e estofador chamado Eugène Pottier, que contém esta frase crucial: “Cooperar nos esforçando pela nossa regeneração, nascimento do luxo comunal, esplendores futuros e República universal”. Eis aí, junto ao magnífico: “Fica abolida a exploração do homem pelo homem” da revolução libertária do verão espanhol do 36, aquela sim que foi uma revolução!, a mais bela e profunda proclama revolucionária que conheço.

O conceito do “Luxo Comunal”, habilmente analisado por Kristin Ross, advogava ao mesmo tempo pela autonomia política, quer dizer, a democracia, incompatível com a existência de um ente exterior ao corpo político como o Estado, e a supressão da divisão do trabalho. Em outras palavras, para os artistas communards a existência deveria ser, em si mesma, e para cada ser humano, uma obra de arte. As consequências deste manifesto são profundas e nos levariam muito longe. Basta lembrar aqui uma das mais significativas: a necessidade de reconciliar a mão, órgão de expressão, com o cérebro, trabalho intelectual, esses velhos amigos separados pela economia política. A cisão das artes liberais e as artes mecânicas deve ser abolida, como já viu o formidável Diderot, num tempo em que essa fenda ainda não era tão evidente. A Comuna apostou por uma reedição do kalos kagathos grego, um conceito do ser humano que articulava deleite estético, altura moral e paixão pelo bem comum. Setenta e dois dias não parece um prazo razoável para desenvolver um programa tão ambicioso, mas os resultados foram espetaculares. O incomparável Napoléon Gaillard, o sapateiro construtor de barricadas do que nos fala Kristin Ross, simbolizou como ninguém o programa da Comuna.

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Voltando aos alfaiates, você explica que um terno, como qualquer outro objeto artesão, nunca é perfeito.

Sim, e isto é muito importante. A procura da perfeição num objeto saído da mão de um artesão revela uma grande incompreensão do artesanato. No soberbo “A natureza do Gótico”, John Ruskin não deixou a menor dúvida: nada do feito pela mão de um artesão pode ser perfeito, porque a irregularidade é a condição da vida. A perfeição é a divisa da máquina; além de vulgar, despoja ao artesão de sua imperfeição consubstancial e lhe impede deixar sua marca, seu selo pessoal. No caso da alfaiataria, a irregularidade das costuras de um terno confeiçoado por um mestre lembra que não há, nem pode haver, outro terno igual, mesmo no suposto de que tentasse replicá-lo. Essa forma de costurar traduz seu saber, mas também seu estado de ânimo, suas circunstâncias pessoais no momento de criar. Dizer que um paletó ou uma calça artesã é perfeita é um elogio de uma enorme incompetência.

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A questão é que nossa época não sente nenhuma paixão pelas coisas únicas, irrepetíveis. Neste gigantesco bazar de quinquilharia sintética e lixo plastificado que é a civilização de máquina, estamos nem aí para o destino das coisas materiais. Compramos por comprar e renovamos sem cessar no mesmo momento em que os objetos se desfazem entre as mãos, justo após a compra. Quantos objetos, quantas roupas, conseguirão superar a prova do tempo e passar de geração em geração, como memória viva dos que nos precederam? E ainda mais importante: como se perguntava William Morris, de quantos seres humanos não será causa de aflição a fabricação de toda essas bugigangas sem utilidade nem beleza? Gostaria que os defensores do materialismo contemporâneo, mais preocupados com as relações sociais de produção que pela materialidade do mundo, à diferença de um alfaiate, um padeiro, um sapateiro, um jardineiro, um carpinteiro, me explicassem este desprezo pelos objetos. No final das contas, tão importante é o que produzimos e como o produzimos quanto a maneira como nos relacionamos com o produzido. Harmurt Rosa tem feito uma crítica magnífica a essa falta de “ressonância” com a vida material e do fio vibrante com os objetos.

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Assegura também que o código de vestimenta clássico não é “burguês”, mas uma mistura de tradições elitistas e populares.

Sem dúvida. Ao longo da história, e mais concretamente no último século e meio, no campo da indumentária tem se dado uma intensa mestiçagem entre a alta cultura e a cultura popular. O intercâmbio e empréstimo de roupas entre esses dois universos tem sido a norma. Nosso terno é, por definição, revolucionário, lembremos as medidas tomadas pela Convenção durante a Revolução francesa, e burguês; possui, inclusive, um ressaibo aristocrático, quando incorpora um colete. Mas também é proletário, camponês e marinheiro. Em tudo caso, aqui entramos nas profundas águas do preconceito.

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A que preconceito se refere?

Aos preconceitos da esquerda política, obviamente, que cedeu o terreno da fantasia indumentária à direita como quem se desfaz de um lastro. Como se o gosto, o refinamento e a delicadeza fossem algo vergonhoso, algo radicalmente oposto à luta por um mundo melhor! Salvo exceções, como a Comuna, isto é assim desde 1789, mas hoje esta rejeição esquerdista atingiu um grau de impertinência surpreendente. A esquerda não se importa mais o mínimo com o que a direita tenha feito, sem que ninguém lhe pedisse, com o monopólio do bom gosto e a retidão moral. E que gosto! E que moral! A comicidade de tudo isto é inesgotável. A direita usa e promove o terno, e que ternos horripilantes!, como símbolo de distinção, mas esquece dos limites morais do vestido. Basta observar a esses senhores de ordem que se atribuem o título de cavaleiros e se gabam de um gosto incorruptível para ver que não são exemplo senão de duplicidade moral. Um aspecto mais ou menos elegante pode encobrir uma essência repugnante, criminal inclusive. Nesses casos, a elegância não vale absolutamente nada; é a máscara de uma fraude.

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No seu livro defende a tradição, melhor dito, um sentido rebelde, contestatário, da tradição, perante ao culto do novo, da inovação, que caracteriza os tempos

Sim. Meu ensaio é uma homenagem pessoal a indivíduos que levaram tanto a elegância quanto a emancipação muito a sério. Na minha galeria de elegantes tem de tudo, menos indivíduos de ordem e flibusteiros. Tem antimilitaristas, antifranquistas, libertários, estetas, marginais, homossexuais e críticos de uma enorme lucidez que cultivaram um apurado gosto pelas formas e uma apaixonada vontade de igualdade social. Que ninguém espere encontrar seus nomes nos grandes livros de elegância ao lado de monarcas nazistas como Eduardo VIII ou criminosos como Churchill, célebres modelos de elegância que não passavam de homens bem vestidos, e às vezes nem isso. Miguel Almereyda, Rafael Barret, Élisée Reclus, Oscar Wilde, Antonio de Hoyos y Vinent, Carl Einstein ou Facerías, o maquis anarquista, sabiam que não se podia separar fundo e forma, que “tudo está em tudo”, como assegurava Pottier durante a Comuna. Essa é uma elegância que impressiona.

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Miguel Almereyda

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Sua crítica se entrelaça também com uma oposição vigorosa à “civilização da máquina” que bebe de Anders e Mumford, e reivindica os luditas e o socialismo de William Morris, preocupado por fazer uma evolução que não seja unicamente justa, mas também bela.

A história dos luditas, entre os que havia, por certo, alguns alfaiates, joga uma luz muito esclarecedora sobre o social darwinismo e os medos hobbesianos sobre o que se assenta a civilização atual. Exclusão social e temor induzido são os autênticos pilares do mundo atual. A grande diferença entre nós e os luditas é que eles souberam ver a ameaça que supunha a sociedade industrial e nós não deixamos de admirar, retrospectivamente, a seus repressores. Estavam errados, dizem marxistas e socialdemocratas: a fé no progresso exige sacrifícios.

No que diz respeito a Morris, ele foi, talvez, o mais clarividente e complexo de todos os que deram o grito de alarme contra o funesto erro de dissociar beleza e a luta por um mundo mais decente e justo. Seu ódio pela civilização moderna e a paixão por criar objetos belos são hoje mais válidos e necessários nesta era de credulidade tecnologia e polarização social. “Oh, a beleza, me responderá, sim, a beleza é importante, mas não dá de comer”. Esta é uma réplica absurda e carregada de má fé na qual não vou entrar aqui. Limitar-me-ei a dizer que considero imprescindível dar a conhecer aos nossos filhos os maravilhosos efeitos que a beleza provoca tanto no espírito, quanto na vida em comum; como separar a arte de se vestir do decorum, a sociabilidade, a amabilidade e a delicadeza com o próximo na esfera pública? Perante tudo, não ferir a sensibilidade alheia com uma aparência descuidada ou feroz. Não sou partidário das escolas, pelo menos da escola atual, mas não seria uma má ideia afastar as crianças das máquinas e lhes apresentar as páginas que Erasmo lhes dedicou num maravilhoso tratado sobre os bons costumes e sua incidência no convívio. A vulgaridade e a grosseria, em qualquer de suas manifestações, nunca tem sido boas mestras.

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O recente debate com ênfase na questão ambiental confirma as suas teses?

Cuidado! O debate não é recente! É só recentemente, e num contexto catastrófico de caos climático, quando o próprio sistema o colocou na sua agenda a fim de se preservar o status quo mediante uma retórica vazia e hipócrita. É como se agora descobríssemos que Jack o estripador houvesse dado palestras sobre os direitos das mulheres. O nível de cinismo imperante é verdadeiramente insuportável.

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Nos fale um pouco sobre os “malefícios” da técnica.

Pergunta imensa que demandaria uma resposta demorada. Diria que a grande ilusão nos últimos dois séculos e meio tem sido a de considerar que a tecnologia é neutra, isto é, que é passível de um uso “bom” e um uso “ruim”. Mas o objetivo da tecnologia da sociedade industrial foi sempre o mesmo, reduzir ou eliminar o papel do ser humano na produção, – mecanização, taylorismo, fordismo, automatização, robotização e, atualmente, logaritmos preditivos e dinâmicos-, em virtude de um universo mental racionalista que foi eliminando as margens dos imponderáveis e o imprevisível da existência. Quem quiser entender o mundo moderno deve ser ciente deste fato elementar. Recentemente, num inquietante livro sobre a era do capitalismo da vigilância, Shoshana Zuboff, esboçou um retrato pavoroso dos incentivos e fins das corporações de alta tecnologia que constitui um excelente bom guia para compreender a revolução em curso. Ainda lembro, quando vinte anos atrás, militantes esquerdistas e anarquistas dançavam de alegria com as novas ferramentas digitais que o capital tinha posto ao serviço da revolução. Que enorme mistificação! Porém, nem sequer a própria Zuboff se livra desta ilusão. Depois de oitocentas páginas descrevendo com detalhe o criminoso funcionamento dos logaritmos preditivos criados pelas grandes corporações como Google ou Facebook para conhecer até o mais profundo de nossa alma e antecipar e manipular nossa conduta, termina seu ensaio afirmando que a cidadania deve exigir que o capitalismo digital seja uma forma inclusiva vinculada ao povo a que deveria servir. Em outras palavras, reivindica um “bom uso das redes sociais”. “Capitalismo digital democrático”! Estas ilusões são catastróficas. Contudo, não podemos desapreciá-las, já que constituem a base do puré ideológico que passa por crítica social. Quem reivindica hoje a abolição da publicidade, o marketing, o turismo? Quem se lembra da elementar exigência de suprimir o trabalho assalariado? Quem fala, alto e claro, que o progresso é um ídolo decepcionante cujo culto nos arrastou a uma crise antropológica e ecológica inéditas? Quem alça a voz para arremeter contra o racionalismo, o utilitarismo, a aceleração, o desenvolvimento, o crescimento, o urbanismo, a mobilidade motorizada e a pesquisa científica orientada por militares e corporações? Quem se preocupa, na pegada de Ruskin e Morris, pela beleza na vida cotidiana, pela necessidade de mergulhar a existência num banho estético (penso aqui nas roupas, mas também na louça do dia a dia, numa bela mesa preparada com carinho para receber aos amigos, na mobília urbana)?

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Qual é o lugar do anarquismo na sua crítica do mundo?

Perante os gravíssimos problemas que nos coloca a civilização, um homem esclarecido se pergunta: “Que devo pensar? Por quê? O que fizeram os homens e mulheres do passado em situações limite? De que maneira suas decisões iluminam esses mortos o presente?” No meu caso, prefiro olhar no espelho de uma tradição, a comunheira, sem ir mais longe, que em momentos decisivos deu uma resposta coletiva ao imenso problema de organizar a existência. Sobre o anarquismo, não quero ser injusto, mas ao longo da minha vida conheci de indivíduos autoproclamados anarquistas que fizeram o impossível para que desistisse do ideal libertário. Apesar de não ser a maioria, exibiam um comportamento tão sectário, narcisista, crapuloso e arrivista que compreendi logo um fato elementar: ser anarquista não proporciona nenhum privilegio moral, nem de nenhum outro tipo. Faz muito que abandonei as etiquetas. Nos assuntos humanos, como disse Hannah Arendt, tentar compreender. Isso é tudo.