INSTITUTO DE ESTUDOS LIBERTÁRIOS ENTREVISTA ROBERTO DAS NEVES FILHO


Junho de 2023

Ficha de imigração de Osvaldo Barreto Pedroso Neves (irmão de Roberto das Neves)

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Quem é Roberto das Neves Filho?

Esta pergunta é difícil. Passados 61 anos, ainda não sei quem sou. Tive uma infância solitária, com um pai absolutamente ausente e uma mãe que tinha dois empregos para me sustentar, pois a receita do trabalho do meu pai ia integralmente, creio, para sua Editora Germinal. O apartamento em que morávamos, no bairro carioca do Lins de Vasconcelos, havia sido comprado por minha mãe. Em compensação, tenho 3 filhos que me garantem que fui um pai amoroso, o que me deixa extremamente feliz. Trabalhei quase 35 anos no BNDES e me aposentei em 2019.

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Ficha de imigração de Maria Jesusa Dias y Saiz Neves (primeira companheira de Roberto das Neves)

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Sobre a chegada do seu pai ao Brasil, o que você poderia nos dizer?

As informações que tenho proveem de conversas com meu primo (e grande amigo) Carlos Cristo, que é sobrinho do meu pai, e de sites da internet. Sei que meu pai publicava sátiras a Salazar no jornal em que trabalhava e volta e meia era preso, sendo libertado a pedido de um tio que tinha boas relações com o governo. Refugiou-se na Espanha, de onde voltou a Portugal casado com Maria Jesusa Diaz y Saiz, mulher de grande personalidade. Em 1943, veio para o Brasil, pois seu tio o alertou que na próxima prisão o matariam ou o enviariam para uma colônia africana. Veio com a mulher e a filha do casal, Primavera Ácrata Saiz das Neves, minha irmã.

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Ficha de imigração de Antônio Barreto Pedroso Neves (irmão de Roberto das Neves)

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Você se recorda de amigos e camaradas anarquistas de seu pai? Quais seriam eles?

Lembro de Edgard Rodrigues, Ideal Perez, Agostinho Carneiro da Cunha. Não posso afirmar que todos eram anarquistas. Conheci amigos do meu pai no meio esperantista e vegetariano. Penso que era um grupo heterogêneo em termos religiosos e políticos.

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Ficha de imigração de Maria Olímpia das Neves Pedroso (irmã de Roberto das Neves)

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Sobre como Roberto das Neves conheceu a sua mãe, Maria Angélica, o que você poderia nos dizer?

Pelo que sei, meus pais se conheceram em 1945 na cooperativa de Esperanto do Rio de Janeiro. Meu pai, ainda casado, foi professor, e minha mãe, que tinha vindo do interior do Espírito Santo para estudar (foi uma das primeiras nutricionistas formadas pelo SAPS), foi sua aluna. Eu nasci 16 anos depois. Creio que meu pai se dividiu entre sua esposa e minha mãe até bem depois do meu nascimento.

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Ficha de imigração de Primavera Ácrata Saiz das Neves (filha de Roberto das Neves)

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Como era ser filho de Roberto das Neves?

Eu tinha muito medo do meu pai. Ele nunca me espancou, mas costumava me esbofetear sem aviso, por qualquer motivo: se eu tossisse, se me visse com uma bala na boca etc. Meu pai era extremamente autoritário, o que me parece contraditório, tratando-se de um anarquista, mas já ouvi relatos de outros anarquistas com esse perfil. Depois da morte da minha mãe, meu grito de liberdade foi comprar carne e comê-la em casa, na frente dele (meu pai era vegetariano).

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Ficha de imigração de Roberto Barreto Pedroso das Neves

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Nos fale um pouco da criação da Vegecoop no Rio de Janeiro em 1962. Foi uma iniciativa de anarquistas?

Este é mais um assunto sobre o qual sei muito pouco. Lembro de ir à inauguração de um restaurante vegetariano, mas não faço ideia do que fosse. Acredito que o grupo que fundou a Vegecoop fosse mais coeso do que em seus últimos anos, mas não acredito que fossem majoritariamente anarquistas. Por outro lado, almocei na Vegecoop até seus últimos dias e fiz amigos lá, neste tempo pessoas muito variadas, que lá almoçavam em busca de saúde.

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Primavera e Roberto das Neves Filho em Paquetá, nos anos 1980.

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O que você poderia nos dizer sobre a experiência editorial de seu pai?

Os livros publicados pela Germinal versavam especialmente sobre anarquismo, vegetarianismo, Esperanto e anticlericalismo. Fico surpreso de a editora ter sobrevivido por tanto tempo, com métodos tão rudimentares de comercialização. Sem dúvida, meu pai tinha coragem, desejo de “mudar o mundo” ou total falta de noção sobre a realidade.

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Maria Angélica de Oliveira (segunda companheira de R.N.) e Roberto das Neves.

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Sobre a sua mãe, como você a descreveria em um sentido mais geral?

Minha mãe foi a quarta de 13 irmãos. Nasceu em 1924 num pequeno município do Espírito Santo, filha de mãe católica e pai protestante. Era uma mulher muito doce, prática e reservada. Veio para o Rio de Janeiro para estudar e formou-se em nutrição numa das primeiras turmas do país. Tinha dois empregos (nutricionista e professora de supletivo) e me sustentava sem qualquer ajuda do meu pai. Era mãe amorosa, embora fisicamente um tanto distante. Nos fins de semana, deitava-se, cansada, e lia pra mim, especialmente Monteiro Lobato. Morreu de câncer em 1978.

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Primavera e Maria Jesusa, nos anos 1950.

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A sua irmã, Primavera das Neves, foi uma intelectual bastante refinada. Ela era filha de uma resistente espanhola e seu pai, certo? Como tomou conhecimento da existência dela?

Não possuo conhecimento para comentar o lado intelectual da minha irmã. Tomei conhecimento dela pouco antes dos 15 antes de idade, por intermédio do tio Rogério, pai do Carlos Cristo, que ficou estupefato ao constatar que eu não sabia que tinha uma irmã. Pedi para conhecê-la e fiquei encantado com ela: doce, suave, gentil.

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Cooperativa Esperantista nos anos de 1980.

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Nos fale mais de Primavera das Neves: onde morava, como ela te recebeu e como se deu a relação com ela e a mãe depois do encontro?

Quando a conheci, em 1976, Primavera morava na rua Gustavo Sampaio, no Leme (zona Sul do Rio de Janeiro). Em 1978, quando minha mãe morreu, a mãe de Primavera pediu a ela que me convidasse para ir à casa delas, e me recebeu de forma muito digna, sem jamais criticar minha mãe. Nos tornamos amigos. Também conheci Sandrinha, filha de Primavera com Manuel, que era um ano mais velha que eu.

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Maria Angélica de Oliveira nos anos de 1970.

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Nos fale um pouco das circunstâncias que envolveram a morte de Roberto das Neves.

Meu pai jamais procurava um médico. Dizia que eram todos charlatães. Depois da morte da minha mãe (ele estava com 71 anos), comecei a notar sinais do que hoje chamamos demência. Uma manhã acordei e o encontrei caído no banheiro. Chamei uma vizinha, que era enfermeira, e ela começou a chorar. Alguém chamou a ambulância e constataram o óbito.

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Poema de Primavera sobre gatos.

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Você tem algum vínculo com o anarquismo?

Por um tempo, senti entusiasmo pelo anarquismo. Li alguns livros teóricos, li “Colônia Cecília”, de Afonso Schmidt, mas sempre esbarrei na dificuldade (impossibilidade?) de realizar o anarquismo na prática. Meu pai escreveu muito sobre utopia, não no sentido de algo impossível, mas daquilo que ainda não foi realizado. Curiosamente, o texto que mais me cativou sobre anarquismo foi um romance atribuído a Júlio Verne, mas que muitos dizem ter sido escrito (ou, ao menos, concluído) por seu filho Michel: “Náufragos do Jonathan”. Um navio com imigrantes europeus que seguem para colonizar terras na América do Sul naufraga no extremo sul do continente. Um anarquista que se refugiara ali salva muitos colonos e acaba se vendo na paradoxal situação de se tornar governador do novo território, a despeito de suas convicções. Na verdade, não tenho entusiasmo por nenhum “ismo” criado até hoje. Creio que a humanidade ainda está longe de aprender a dividir o planeta entre si e espero que não o tornemos inabitável antes disso. Um pensamento curioso meu: tanto anarquistas quanto kardecistas têm grande fé na evolução moral da humanidade. Uma vez brinquei com a expressão anarco-kardecista, o que causou grande indignação de um colega de trabalho kardecista.

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Roberto das Neves Filho (camisa branca) e o pai na Vegecoop nos anos de 1980.