INSTITUTO DE ESTUDOS LIBERTÁRIOS ENTREVISTA CARLOS BAQUEIRO


Junho de 2023

Quem é Carlos Baqueiro?

Um trabalhador baiano, nascido em 1962, agora aposentado, depois de 35 anos na área industrial do petróleo, tanto na Bahia, quanto em outros estados. Um eterno estudante, que se graduou nas áreas de História e Jornalismo. Também adorador do mundo do cinema, do mundo da TV e do mundo dos computadores. O cinema, desde os filmes infantis nas telonas do Cine Tupi, ou Cine Uruguai. Até os dias de hoje, cavucando por streamings que falem do mundo a partir de algum ponto de vista libertário. E computadores, desde um CP-200, que comprei em 1982, até esse hoje que me ajuda a escrever esse texto e que ajuda a fazer muitas doideiras com os canvas e chats-gpts da vida, ajudando a divulgar ideias bacanas do anarquismo.

Quando e como você conheceu o anarquismo?

Eu estudava na Escola Técnica, curso de Metalurgia, e um professor levou algum material sobre uma eleição na França, ganha pelo socialista François Mitterrand, em 1981. Na reportagem, tinha um anarquista falando da necessidade de implementar a autogestão nas fábricas. Fiquei interessado e corri atrás. Por uma grande coincidência, estava no ar a novela “Os Imigrantes”, com Paulo Autran fazendo o papel do anarquista Paco Valdez. A vontade de conhecer mais sobre anarquismo aumentou. Se corria para o dicionário que tinha lá em casa, era aquela coisa da falta de governo e da bagunça. Fiquei inquieto. Não batiam as palavras do anarquista francês e da novela com os termos do dicionário. Corri para a Biblioteca do Estado, nos Barris, e fui falar com a bibliotecária, temeroso, claro. A gente estava num período em que ainda podia se ouvir que grupos militares estavam querendo reendurecer a Ditadura. Não sei se foi real ou não, mas lembro da moça da biblioteca me olhando de um jeito estranho quando perguntei a ela meio gaguejando se havia ali algum livro sobre anarquismo. Ela demorou um pouco para ir até as caixinhas de cartões. E lá, achou o cartão do Socialismo Libertário, de Bakunin, da Editora Global. Era o único que havia ali, segundo ela. “Vai ali, na última estante, lá atrás e, se não achar, me fale”, disse ela. Achei e levei. Passei uns dias com ele. Naqueles dias, eu virei anarquista. Rs, rs.

Nos fale um pouco sobre a experiência do Inimigos do Rei.

Depois do período de conhecimento do anarquismo, olhos e ouvidos ficaram sempre em busca de algum indício da existência dele aqui por Salvador. Sabia da existência de comunistas (alguns ainda escondidos) em espaços ligados aos partidos ou às centrais sindicais no nascedouro. Ia nesses locais procurando alguém com o mesmo espírito libertário que eu tinha tomado para mim. Ainda em 1981, descobri numa das bancas de revista da Praça Municipal, onde eu já comprava o jornal “Em Tempo”, e as revistinhas “Thor” e “Cebolinha”, também uma edição do jornal “O Inimigo do Rei”, com Elba Ramalho (imaginar que era uma libertária…). Encontrei baianos anarquistas. Alegria, alegria. Ricardo, Tony, Tavares, Alex, Eduardo, Hilda, Cleuzete, Tidinho, Mimoso, que juntos com outros tantos mantinham aberto cinco dias na semana o Centro de Documentação e Pesquisa Anarquista (CDPA). Dali em diante virei um seguidor assíduo do jornal. Sempre estava procurando nas bancas (ainda com aquele cuidado paranoico de estar sendo observado no momento da compra). Mas não me aproximei do grupo que publicava o jornal. Era período de priorizar o trabalho, para o ganha pão. Estágios, concursos… até um trabalho com carteira assinada aparecer, no Pólo Petroquímico de Camaçari, em 1982. Só fui me encontrar pela primeira vez com a turma do jornal em 1985, com o lançamento da edição 18, com a capa relacionando Roberta Close e Paulo Maluf. A partir dali, comecei a participar da produção do jornal, como jornaleiro e jornalista, como se esperava de todo militante anarquista. E entrei com tudo no CDPA, ajudando na manutenção, abrindo a sala um dia ou dois da semana, organizando atividades. Na realidade, participei de quatro edições do O Inimigo do Rei em três anos. Das últimas edições.

Você se reconhece mais especificamente em alguma das correntes históricas do anarquismo?

Não. De forma alguma. Penso no anarquismo como um monte de gente que foi somando as ideias e as ações e todas têm valor. Até chegar em mim, com minha visão Única de anarquismo. Rs, rs… Adoro ler as histórias dos anarco-sindicalistas espanhóis e brasileiros… adoro conhecer, sempre mais, as histórias dos anarco-individualistas norte-americanos… do desbunde que sempre serão os naturistas do mundo todo… da rigidez disciplinar dos insurrecionais… todos indo de um lado para outro, tentando alguma coisa educativa aqui, alguma coisa cheia de ação ali, tomando uma porrada ali na Espanha, da direita, ou na Rússia, da esquerda… gosto de todo pensamento e ação anarquistas. Mas meu lado anárquico também me deu a vacina pra não acreditar que tudo que os anarquistas fazem é passível de aplausos. Misoginia, homofobia, racismo e tantas outras desgraças já passaram, e vão continuar passando, pelas cabecinhas de anarquistas, e a gente precisa ter o discernimento pra dizer: Opa… vamos ficar de butuca.

O que você teria a nos dizer sobre a relação entre sindicalismo e anarquismo?

Essa relação entre anarquismo e sindicalismo é algo construído, né. Indivíduos como Bakunin, Guillaume, Pelloutier, que foram construindo um pensamento revolucionário baseado na ideia de que o sindicato seria um espaço bacana para organizar os trabalhadores antes mesmo da revolução acontecer. Acho interessantíssima a ideia. Porque, se viesse mesmo alguma revolução, os trabalhadores estariam organizados para, no dia seguinte, conseguirem levar comida para as pessoas (principalmente para aquelas que comiam pouco antes da revolução). Se não há revolução, os trabalhadores estarão organizados para resistir tanto ao capitalismo, quanto ao Estado autoritário. A ideia de construção de uma cultura própria também, sempre foi, pra mim, uma estratégia potente do anarco-sindicalismo na direção de um mundo melhor, e mais divertido, mais diverso… Quando me associei tanto ao Sindicato dos Metalúrgicos, quanto ao Sindicato dos Petroleiros, sempre tive essas ideias em mente. Mas sabia, obviamente, que a Estrutura Sindical Brasileira foi criada como antípoda do modelo anarquista. Quando os “revolucionários” de 1930 criaram a Estrutura Sindical que sobrevive até hoje, eles pensavam em oposição às lutas dos operários, justamente contra os operários que seguiam as táticas anarquistas.

Nesse intuito de fazer um bolo alimentar entre o sindicato já existente e alguma coisa que já existiu no passado e que poderíamos nos espelhar no futuro é que participei da reconstrução da Confederação Operária Brasileira. Assim, começamos a montar, a partir de 1987, um Núcleo Pró-COB em Salvador. Fiquei nesse corre até 1992, quando a ideia da COB não pareceu mais algo passível de construir naquele momento, pelo menos. Além das crises internas entre indivíduos e grupos, claro, que vão minando as organizações. Mas olha só. A coisa estava funcionando. Sem muito suor, chegamos a organizar, em Salvador, uma Associação de Trabalhadores em Mercados e Mercadinhos (essa funcionou por alguns meses, mas as agruras da legislação sindical e uma ferrenha oposição das raposas velhas do PCdoB deram uma boa rasteira na gente).

Essa tentativa de construir uma ligação entre anarquismo e os sindicatos existentes deu algumas dores de cabeça. Na época dos Núcleos Pró-COB, por exemplo, fizemos alguns informativos que nos levaram a ter de cair fora em algumas situações. Em uma dessas situações, entregamos um jornalzinho falando da situação de presos políticos em Cuba, em assembleia dos petroleiros, e dias depois, em outra assembleia, apareceram militantes do PT tentando dissuadir a massa dos trabalhadores a dar porrada na gente !!! Tivemos que sair de mansinho pra não acontecer nada de ruim. Em outro bafafá, um partidário do PCdoB, que tinha boas relações com juízes de trabalho na época, pressionou um dos militantes do núcleo Pró-COB a parar de panfletar na porta de um grande mercado, porque ali seria exclusividade deles: ou o camarada parava a panfletagem ou o marxista albanês pediria ao patrão que o demitisse !!! Mas a maioria absoluta dos trabalhos que fizemos, inclusive dentro dos sindicatos oficiais, foram prazerosos. Aliás, boa parte dos grupos anarquistas de que participei sempre primaram por essa regra. Militância tem de ser prazerosa.

Sobre o seu livro que aborda a questão da luta sindical na Petrobras, o que mereceria maior destaque?

O livro nasce de uma busca por informações sobre a história dos trabalhadores petroleiros que comecei a partir do meu trabalho na Petrobras, onde entrei em 1986, e depois no Curso de História (1992), na Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Tive alguma dificuldade na escolha do tema, porque, nos anos 1990, muitos professores defendiam que a História do Presente tinha muitos problemas que impossibilitariam que conseguíssemos resgatar o tempo passado (como se esse “resgate” fosse possível em alguma forma de fazer história… rs, rs…). Mas, aos pouquinhos, negociando aqui e ali, tesando aqui e ali, cheguei a um TCC em que escrevi sobre As Greves dos Petroleiros como uma forma de se conhecer a identidade combativa daquela categoria. E, com certeza, dentro do trabalho, uso uma perspectiva de análise libertária, particularmente nos elogios aos processos grevistas, corolário de uma das mais felizes estratégias dos anarquistas e sindicalistas revolucionários, a ação direta. Com o tempo, resolvi transformar o TCC em livro, e autofinanciei a publicação.

Como o anarquismo se desenvolve hoje na Bahia?

Após o pico de 2013, vários grupos libertários se organizaram ou se reorganizaram. Esses movimentos vão se definhando até chegar ao momento atual. Tenho uma séria desconfiança se isso é motivado justamente pelo fortalecimento das redes sociais. As redes parecem dar ferramentas de construção de organizações, mas, pelo menos para os anarquistas, isto funcionou de maneira contrária. O mundo anarquista soteropolitano parece ter se fragmentado em dezenas, talvez centenas, de indivíduos por trás de suas telas ou telinhas, que fazem pouquíssimas ações sistemáticas.

Sobre a sua convivência com o nosso querido Tavares, você poderia nos dizer alguma coisa?

Conheci Tavares (El Brujo) em uma reunião domingueira no CDPA, em 1985, logo que cheguei ao espaço que existia na Praça da Sé, centro de Salvador. Como dois trabalhadores na indústria, criamos logo uma sintonia bacana que mantivemos até sua morte, em julho de 2020. Naquela época, ele estava desempregado, vítima da Ditadura, que demitiu os grevistas de 1983 na Refinaria Landulfo Alves, em São Francisco do Conde, pertinho de Salvador. Ele foi um dos 190 demitidos após os dias de greve. Fazia bicos, porque era quase impossível voltar ao trabalho industrial, tendo em vista seu nome estar numa “lista” que o governo disponibilizava de trabalhadores não muito bem vistos. Apenas em 1988, já no governo de Sarney, ele consegue um trabalho numa empresa do Polo de Camaçari. Em 1990, ele retorna à Petrobras, com acordo entre sindicatos e governo e decisão judicial.

Quase todos os trabalhos coletivos em que nos enfiamos, fizemos em dupla. Militância no CDPA, com as quatro últimas edições do “O Inimigo do Rei”, organização do Núcleo Pró-COB de Salvador (1986-1992), criação e manutenção da Associação em Prol do Pensamento Libertário (APPL, de 1993 a 2005). Dentro de um espaço da APPL, que estabelecemos durante um ano dentro do bairro periférico da Fazenda Grande do Retiro, em Salvador, criamos em 1994, juntos com outros militantes anarquistas, a Biblioteca Emma Goldman, que continua em uma existência nômade até hoje. Também trabalhamos, a partir de 2006, junto ao Instituto Sócio-Ambiental de Valéria (ISVA), criado por Antônio Mendes, outro grande anarquista, quase baiano. Rs, rs… Tavares, El Brujo, era um cara super desconfiado com a raça humana, mas vacilou algumas vezes em acreditar demais nos próprios pares anarquistas… talvez ele acreditasse que os anarquistas não eram seres humanos, mas, com certeza, são. Rs, rs…

Qual a sua visão geral sobre a conjuntura política atual?

Não sei se é uma percepção só minha, mas acho que estamos num período de vacas magras para o anarquismo. Parece que estamos sempre dando murro em ponta de faca. Talvez tenha sido isso mesmo em todas as épocas, no mundo todo. E agora com uma nova constatação, o reaparecimento de um movimento de massas de extrema direita, depois de dezenas de anos. E foi a partir dessa constatação que quebrei a regra e votei na eleição de 2022. Aliás, votei e fiz campanha (uma campanhazinha, pra ser sincero). Não me considerei em posição de ver o país mais quatro anos nas mãos da extrema direita, mesmo sabendo que a alternativa não é alguma coisa que preste. Quando a extrema direita chegou a Brasília, após a eleição de 2018, foi um grande baque nas atividades da biblioteca da Maloca Libertária, por exemplo. 2019 foi um ano quase sem atividades (medo, insegurança, decepção? Lembrando que alguns colaboradores da Maloca eram reminiscentes da Ditadura). Isso só piorou depois que a Pandemia chegou. Por coincidência, a Maloca só volta às atividades (bem reduzidas) em fevereiro de 2023.

Suas considerações finais.

É isso ai. Acho que já tem muita coisa ai. Deixa as considerações finais para o final dos tempo. Rs, rs.