no


1. No um que escrevi em março para anunciar as conversas na aberta sobre referências LGBTQ na literatura portuguesa do Estado Novo, deixei uma lista do que até aí tínhamos lido de antes de 1926 e depois de 1974. Como as sessões dedicadas à ditadura não tinham ainda acontecido, não ficou organizado o que leríamos desse período, pois hoje resolveremos isso. Aqui está:

de não-ficção
, Marcello Caetano («’Arte’ sem moral nenhuma», Ordem Nova: Revista anti-moderna, anti-liberal, anti-democrática, anti-bolchevista e anti-burguesa; contra-revolucionárias, reaccionária, católica, apostólica e romana, monárquica, intolerante e intransigente, insolidária com escritores, jornalistas e quaisquer profissionais das letras, das artes e da imprensa, ano 1.º, números 4-5, junho-julho, 1926)
, São José Almeida (Homossexuais no Estado Novo, 2010)
, Raquel Afonso (Homossexualidade e resistência no Estado Novo, 2019)
, Valentim de Barros nas obras de José Fontes (Hospital Miguel Bombarda: 1968, 2016) e Catarina Gomes (Coisas de loucos, 2020);

de ficção
, José Régio (romance Jogo da cabra cega, 1934)
, Jorge Marmelo e Silva (novela Sedução, 1937)
, Luiz Pacheco (conto O libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor, 1961/1970)
, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno (Novas Cartas Portuguesas, ou De como Maina Mendes pôs ambas as mãos sobre o corpo e deu um pontapé no cu dos outros legítimos superiores, 1972);

de teatro
, Natália Correia (Comunicação: em que se dá notícia duma cidade chamada vulgarmente Lusitânia através alguns fragmentos dos Oxyrhynchus Papyri interpretados pela autora que desejando julgar o seu tempo ousou ler no passado a signa do presente, 1959)
, Bernardo Santareno (O pecado de João Agonia, 1961);

de poesia
, Pedro Homem de Mello
, Vasco de Lima Couto (Recado invisível, 1949; e outros)
, Reinaldo Ferreira
, Ary dos Santos
, Manuel Mengo (O rapaz que dança na feira, 1949)
, Eugénio de Andrade (Obscuro domínio, 1971; e outros)
, Mário Cesariny (Pena capital, 1957; e outros)
, Cruzeiro Seixas
, Armando Ventura Ferreira (A astronave, 1963; O carro de Apolo, 1977)
, Manuela Amaral (Madrugadas, 1957; Mais alto, 1958; Fé pagã, 1961; A história duma noite, 1963; A cruz de pau, 1965; Hino proibido, 1967; Mulher repetida, 1974; Amor geométrico, 1979).

Um extra para vocês: dois filmes sobre os surrealistas Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas
, Autografia (Miguel Gonçalves Mendes 2004)
, As cartas do Rei Artur (Cláudia Rita Oliveira 2016).

2.

Reprodução a preto e branco de desenho «Tintin et Gazelle», A cidade queimada (Mário Cesariny 1966).

3. 1957: em Portugal, Cesariny publica o livro de poemas Pena capital; em França, Bataille publica o livro de ensaios L’érotisme. Em um e outro se defende a mesma tese: a impossibilidade de pensar o erotismo sem a transgressão.

Vemo-lo no «vulto, esguio como espectro» do rapaz da camisola verde de Homem de Mello, marujo ou soldado à esquina, «entregue à noite, aos homens, ao pecado…» (verso que nunca se canta no fado). Vemo-lo nas «experiências da devassidão» e nos «estranhos exemplares de vício» do Jaime Franco de Régio. Vemo-lo no «anjo que me rasga e apetece» de Mengo. Vemo-lo nos que «Chegavam, bebiam / a púrpura dos espelhos / e partiam. / Sem declinar o nome.» de Eugénio. Vemo-lo no à vontade de Cesariny em dizer ao que vem em três tempos: «pôr-te na posição sexual / tirar-te todo o bem e todo o mal / esquecer-me de ti como do gato»; ou mesmo no bacanal pessoano do seu poema de crítica heteronímica «[O Álvaro gosta muito de levar no cu]». Vemo-lo nos versos de Cruzeiro Seixas, quando «(…) éramos três sobre umas rochas / e a lua / e a mão do terceiro levou a minha boca / comovidissimamente / até à boca do segundo…». Vemo-lo, claro, no «primeiro engate de magala» do Luiz Pacheco em Braga. Vemo-lo ainda nas muitas histórias de urinóis contadas por São José Almeida e Raquel Afonso como resultado das suas entrevistas. E acabámos por não o ler na livraria, mas também o vemos no romance Sinais de fogo de Jorge de Sena, através de jovens que se masturbam na praia, ou nos poemas em que o autor fala de festas privadas e orgias. E na relva ou na praça com o Raul de Carvalho ou no Parque Eduardo VII com o Armando da Silva Carvalho.

Na literatura portuguesa escrita ou publicada durante o Estado Novo, a transgressão cria a sua própria geografia, uma vida alternativa dos espaços (como, de resto, o cruising faz). Para escapar à norma nas cidades, à vida famíliar, as histórias contadas passam sempre pela noite, gestos às escondidas, olhares atentos, sinais a interpretar, nas sombras, no escuro. Outra estratégia possível (e usada) é sair do meio urbano, ir para a natureza, porque aí, de dia ou de noite, o isolamento cria a oportunidade.

Acho que, por vezes, há a ideia feita de que na literatura portuguesa nunca se é muito explícito no que diz respeito à exploração sexual e, na verdade, não há razão para não estar lá tudo como em qualquer outro país. Os exemplos que usei acima são todos de homens porque o cruising (o desejo, o engate e o sexo anónimo em locais públicos) é um fenómeno tradicionalmente conotado com a sexualidade gay, ou pelo menos a dos homens que fazem sexo com homens mesmo que não se identifiquem como tal, mas a poesia de Manuela Amaral (a que ainda voltarei nestas cartas) aí está para mostrar que não só os homens falam do seu desejo. Nunca fomos, afinal, tão mansos quanto culturalmente gostaríamos de dizer que somos.

Um exemplo engraçado é precisamente o livro de Cesariny que parodia a poesia do Supra-Camões. Resumindo: os surrealistas portugueses não eram assim muito dados ao louvor de Pessoa, a quem Cesariny chamava O Virgem Negra, mais depressa elogiariam um Teixeira de Pascoaes (a que, pelo contrário, Cesariny chamava O Virgem Branca) ou, na história que aqui me interessa, um Raul Leal (mais conhecido por, no «Escândalo de Sodoma» dos anos 20, ter tomado posição na defesa de António Botto e Judith Teixeira). Nessa obra O Virgem Negra (1989), Cesariny vai ao ponto de transcrever cartas bastante explícitas de Raul Leal, uma delas (para Mário de Sá-Carneiro, em 1916) diz o seguinte:

Também ultimamente em Lisboa sofri uma atracção eléctrica semelhante à de Paris seguida de outra já então cheia de revolta, de reacção contra a «detrésse», mas num campo mais interessante posto que ainda mais ignóbil, a atracção estupenda dos urinóis públicos! Era naquela atmosfera animalizadora de urina que eu precisava realizar as minhas perversões. E então corria espavorido pelas Avenidas e Aterro em busca de porras que me explodiam nas mãos para eu depois as lamber numa nervosidade estonteante de alcoólico…

Já depois da Revolução, autores portugueses de três nomes como Joaquim Manuel Magalhães, Jorge Aguiar Oliveira ou Duarte Drumond Braga continuarão esta tradição literária.

4. Ainda sobre cruising, alguns livros:

Alex Espinoza escreveu Cruising: An Intimate History of a Radical Pastime (2019), um livro bastante acessível sobre o tema, do ponto de vista de alguém nascido no México e educado na América. O prelúdio traça um paralelo muitíssimo interessante entre o sexo e a literatura. Segundo o autor, a solidão essencial do cruising, o tempo «to identify the cracks, to see the openings, to recognize the breaks and tears that exist in the ordinary», a vigília, a disciplina (tudo é descrito como um exercício de meditação) podem ser comparados ao processo de escrita. A frase de Espinoza que fecha essa introdução é mesmo «Cruising made me write». É também um – pisco o olho ao Eugénio – ofício de paciência.

Onde Espinoza fala do ponto de vista biográfico e recolhendo documentos e relatos de acontecimentos históricos, Jack Parlett no seu The Poetics of Cruising: Queer Visual Culture from Whitman to Grindr (2022) aborda o tema através de artistas que o trabalharam em fotografia, cinema, literatura. Parlett começa o livro com a referência ao trabalho fotográfico incontornável de três autores: Christopher Street 1976 de Sunil Gupta, Boy-Friends de Hal Fischer e The Piers de Alvin Baltrop. Pesquisem porque é tudo lindíssimo.

Não se pense, no entanto, que todas as pessoas concordarão com a prática. Um exemplo que sempre me divertiu foi o do revolucionário francês Guy Hocquenghem, autor de O desejo homossexual (1972). No ano a seguir ao do seu primeiro livro, publica o ensaio «The Screwball Asses» (original francês: «Les culs énergumènes») na edição de março da revista Recherches co-organizada por Félix Guattari, subordinada ao tema «Three Billion Perverts: An Encyclopedia of Homo-Sexualities» (em francês, «Trois milliards de pervers: grande encyclopédie des homosexualités»). Não seria preciso dizer que o editor foi multado, a tiragem completa da revista apreendida e ordenada a sua destruição.

No início desse ensaio, Hocquenghem conta três histórias. Uma delas passa-se numa reunião na Escola de Belas Artes, em Paris, da Front Homosexuel d’Action Révolutionnaire. Depois da reunião, o autor vai ao quarto de banho e, à meia luz, entre poças de água e urina, vê meia dúzia de corpos anónimos. Por saber que a satisfação escondida da sexualidade foi sendo engendrada em tempos em que não havia outra forma de o fazer, o autor acha inconcebível que tal continue a acontecer num período como agora (o seu tempo), na França pós-68 (o seu espaço), em que (a sua opinião) o homem já pode desejar à vontade quem quiser.

Well, yes, I was ashamed. But I was ashamed of my shame. It is as if homosexual desire could only be inscribed where repression has inscribed it. I know how many queers only have toilets in which to touch each other. It depresses me that those who have decided to come out of hiding continue to project their excitement in the miserable places that the system condescends to allow them and where the police provoke them. Toilet spasms are like banking transactions: a flow of cum running in the shadows, as disincarnate as money, checks of cum behind the grate of a bank teller window.

I suddenly turn fascist and want to chase the queers from their tearoom with a whip. I want to throw them out of this cell where they can only revel in darkness. Strange paradox: they can desire almost any body with a dick and an ass (I wish I could), on the condition that it all happens in the shadows, that they fuck without knowing each other, that only machinic organs be involved.

Put the same people in a lit room, as we have just seen, or in a tranquil prairie (not to mention a public park), and they start talking to escape desire, or they look askance at one another, eyeing the only body with which they would like to be alone. The desiring machine produces crepuscular orgies or couples that close in under the light, and then shut off the electricity.

A rejeição do cruising por Hocquenghem é, no fundo, a saída utópica para outra coisa ainda mais inconcebível socialmente: que toda a gente pudesse trazer para a luz e fazer em público tudo o que quisesse. E, acima de tudo, parece esquecer que, se a prática ainda hoje sobrevive, mesmo depois do fim de certos (não todos) regimes repressivos, é porque o ser humano não se realiza apenas por aquilo de que tem necessidade, mas também por simplesmente o que deseja, pela sua vontade (seja ela de contacto, intimidade, evasão, o que seja).

5. Deixo-vos um último poema. Este também foi lido aqui nas conversas sobre literatura portuguesa, mas na verdade nem é de um autor que faça parte do nosso catálogo. Julgo que, quando lerem agora o texto, que é de Mário-Henrique Leiria, perceberão o porquê de o termos lido então. Uma boa mensagem para este mês?

POEMA EM PROSA

Irmãos: Sois livres. Nascestes como eu. Eu e vós somos homens, temos direito de viver, de sentir que qualquer coisa é nossa. Amemos, irmãos, sintamos escorregar entre os dedos as nossas paixões. E, se não pudermos amar, odiemos. Mas que o nosso ódio seja grande, seja ainda feito de amor, de amar aquilo que não temos. Sejamos magníficos a odiar e a destruir. Destruir, irmãos, destruir tudo para que alguma coisa seja feita de novo, seja feita por nós… Nós amaremos então o nosso ódio, aquele ódio que será sempre a nossa glória porque é feito de sentimentos enormes. Amar, irmãos, quanto mais não seja, odiando. Tudo nos será, então, indiferente. E este cansaço longo que agora sentimos já não será cansaço. Será esperança, será alma, será luta, será tudo, tudo, tudo que vem de longe, de lá de onde ainda pode vir qualquer coisa, de lá onde está a nossa fé. E o nosso ódio será delírio, será êxtase, será idolatria. E nós odiaremos então porque não pudemos amar como queríamos, porque nunca nos deixaram amar, porque sempre nos apontaram em silêncio e nos desprezaram. E amar-nos-emos a nós mesmos e seremos indiferentes àqueles que nos disseram: não amarás. E destruiremos, arrancaremos tudo e a blasfémia será o nosso escudo. E tudo será nosso, nosso, nosso. Sim, porque nós, irmãos, também temos alma, também sofremos e sentimos. A nossa carne e o nosso sangue servirá para que outros, os que vierem depois, tenham direito a amar e não a odiar. Irmãos, temos alma. Odiemos essa própria alma enquanto ela for cobarde e não gritar, e não se desfizer em ânsias de liberdade. Oh alma! vem depressa libertar-nos do nosso ódio. Vem… Vem.

6. Uma escolha muito pessoal de seis longas da década de 2010, para terminar

, Tom à la ferme – Tom at the Farm (Xavier Dolan 2013)

, Moonlight (Barry Jenkins 2016)

, Call Me by Your Name (Luca Guadagnino 2017)

, Sauvage – Wild (Camille Vidal-Naquet 2018)

, And Then We Danced (Levan Akin 2019)

, Portrait de la jeune fille en feu – Portrait of a Lady on Fire (Céline Sciamma 2019).

Subscrevam e recebam a nossa newsletter todas as sextas-feiras.