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1. De quatro em quatro anos, rapo o cabelo. Deixo-o crescer, sabendo que eventualmente terei de o rapar (porque quero): começar de novo. Nos últimos quinze anos, já o fiz sozinho, já mo fizeram a mim num espetáculo, e em cabeleireiros, a minha vida organiza-se por esses ciclos (ou o cabelo pontua ciclos da minha vida). Não raro, quando a situação envolve outra pessoa, tenho de a convencer a fazê-lo, assegurando que não me vou arrepender, o que é cansativo. Há quem me conheça careca, quem me conheça com muito cabelo, umas pessoas vêem-no crescer e habituam-se, outras vêem-no desaparecer de um dia para o outro e assustam-se, poucas vêem tudo e compreendem que o tempo anda para a frente e para trás. Pode não parecer, mas já estou a falar da poesia do Amândio.

2. Spinalonga: ilha usada como lazareto, para isolar pessoas com lepra e deixá-las esperar pela morte. O livro-terra de Amândio conta-nos cirurgias e bonecos de plástico a derreter, doenças de pele, anfíbios e fósseis. Tem três partes de oito poemas, como um dia de três-vezes-oito-horas, mais um poema-definição final para cada uma («Consolação» / «Desolação» / «Insolação»; etimologias riquíssimas, falsas ou não, explicam a relação destas palavras com a luz solar). Folheio-o e estranho ver a fechar as partes esses três poemas que lhes poderiam servir de título (ou epígrafe, apesar de o livro as ter). Viro-o de costas, experimento lê-lo por trás. Afinal de contas, passar da consolação à desolação para acabar na insolação parece-me terrível (mesmo que não se afaste demasiado da estrutura de O estrangeiro de Albert Camus).

Lendo ao contrário, não sem uma pontinha de esperança, vamos da insolação à desolação que precisará e terá um consolo final. Pergunto-me se estou a abusar do poeta ao usá-lo para o meu conforto ou se devo lê-lo como ele definiu, mesmo que a história esteja de trás para a frente. Cada pessoa faz o que quer com a sua história: se lermos da esquerda para a direita, «Spinalonga» é a última palavra do poema que abre o livro; se lermos da direita para a esquerda, torna-se o fim do poema que fecha o livro. Encontro alguma ordem, «a revelação do avesso» diz o poeta, respiro de alívio. Volto às gradações de luz. A parte 1, Consolação, refere «amanhecer» e «entardecer»; a parte 2, Desolação, aponta para a «noite»; Insolação, a parte 3, associamos não a um calor que é calma, mas a um sol forte que nos queima.

Pergunto-me: se a noite ocupa o centro em vez do fim do livro, isso não sustenta, de alguma maneira, a nossa necessidade de consolo impossível de satisfazer? Da esquerda para a direita, o entardecer passa à noite que passa ao dia; da direita para a esquerda, o dia passa à noite que passa ao amanhecer. Quantas direções diferentes na leitura de um livro? Para que tempo aponta a palavra «revéspera» que ele usa? Não uma resposta, mas uma escavação: o poema central é «Oídio», que podia ser uma gralha para o autor das «Metamorfoses», mas é a lepra branca de certas plantas; todavia, num livro com homens que são, como ilhas, «uma porção de água rodeada de terra por todos os lados», e também, quando reduzidos ao seu caroço, «a semente rodeada de água», pode igualmente ser uma poderosa metáfora ______

Ninguém presumiria que houvesse, mas há,
bem metidos no chão, casulos de borboleta,
por debaixo da pele do terreno, dois dedos
de fundo, revertendo a sua ponta larvar
sempre que interrogados, como um indicador.
E ao invés de a plantar, a enxada exuma a pupa,
levantando em revolta a semente quimérica
da traça que é uma esfinge, traça-colibri.
(…)

3. Pterodáctilo: questão de identidade – nem dinossauro nem ave, mas réptil voador. O irmão do meio é, dos três, o livro com mais jogos de palavras (e de imagens, como a península em «No Man is an Island»). O livro-ar de Amândio fala-nos de línguas, sexo e ovos. Divide-se em duas partes, «Descobrimentos» e «Encobrimentos», cada uma das asas dividida em três grupos de dez poemas (com mais um de introdução e dois de conclusão, as patas). Sensação inicial de segurança: não me estão a esconder nada, vemos tudo à primeira. Reconheço o poeta em títulos como «As metamorfoses» e «Metempsicose». Começo a ler, ler é sempre perigoso, daí vêm todos os problemas. Reparo que o poema «Pomologia» é o sétimo a contar do início e que o «Pomologia II» é o sétimo a contar do fim. Estranho. Vejo melhor, tento ler o índice em espelho.

O primeiro do início, «Travessia», liga-se ao primeiro do fim, «O outro lado»; o sexto do início, «Língua materna», liga-se ao sexto do fim, «Língua estrangeira»; o vigésimo quinto do início, «Mar de lágrimas», liga-se ao vigésimo quinto do fim, «Freático»; o último a contar do início, «Corpo de Deus», liga-se ao último a contar do fim, «Vocação». Um livro que sai das extermidades e, membrana a membrana, caminha para o seu centro? O que se esconde no centro do pterodáctilo, o que é preciso «tirar para dentro / e pôr para fora»? Posso dizer-vos: dois corações, «O Antropóide», de um lado, e «Lázaro», do outro (o primeiro livro já tinha um poema chamado assim). Poderia também dizer «coisa ou animal, não-humano, desumano ou pós-humano», mas estaria a citar-me a mim. Quedo-me, agarro-me a esta forma de ler ou continuo?

É que – merda, continuei –, mais à frente, há outra pedra no caminho (ou «No meio da pedra, havia um caminho», como diz o poeta). Os poucos poemas datados registam uma cronologia inversa, percebo de novo que estou a ler do futuro para o passado: primeiro o poema de 1 de abril de 2029, depois 20 de junho de 2019, depois 14 de julho de 2018, depois 13 de fevereiro de 2018 e chego a 26 de maio de 2017. Preciso de uma ordem cronológica para ler ou aceito finalmente ir contra o tempo? Estou a aprender a ler ou a desaprender? Transformamo-nos, mudamos, evoluímos em que direções? Ou voltamos a algo anterior (interior), que perdemos, que enchemos (ou nos encheram) de camadas que agora tentamos tirar? Progresso ou regresso? Em «Lázaro», um dos corações, reencontro a tal metáfora ______

Nascemos duas vezes para lá dos homens
– não entre eles –, em carne atravessada.
Por isso o curvo olho que nos contempla diz enganos,
semelhanças, que somos parecidos uns com os outros
e outros issos, qualidades hominídeas
(…)

4. Antilha: arquipélago ou anti-ilha? O livro-água de Amândio, o mais erótico, tem uma estrutura aparentemente simples, o que faz sentido para uma obra que tanto fala de infância e juventude. Entre «Son Goku, Jesus Cristo, Sailor Moon», os poemas referem ainda cantigas (de amigo), Elagábalo, golfinhos e tirésias. São quatro partes distintas (apesar de todas começarem pelo «Dia da Anunciação») com conjuntos de poemas de número variável (6 – 7 – 5 – 8). Desconfio, o leitor já vai ficando calejado, «tenho receios, / pressentimentos, / perante a obra, / barragem: pele». Vejo com mais atenção: surge, aumenta, diminui abaixo do primeiro baixo, aumenta acima do primeiro cimo; movimento de ondas. As duas primeiras somam treze, as duas últimas também. Recordo o verso: «Honrarás o dia de Vénus com o teu choro, o dia 13».

Folheio e descubro que, ainda por cima, o índice desta vez é apenas uma versão resumida, não mostra a maior fluidez dos poemas, que muitos têm duas, três entradas. Ainda assim, se contadas individualmente, a coisa não é tão irregular como aparentava ser a olho nu (10 – 10 – 15 – 10): aliás, a terceira parte que parecia ser a menor afinal é a maior (arquipélago ou anti-ilha?). Há uma citação de Deleuze e Guattari de que gosto muito: «Não há diferença entre aquilo de que um livro fala e a maneira como é feito». Quando comecei esta carta, não sabia que ia continuar o tema da anterior. Ainda chegarei à conclusão que sou chamado por poetas que escrevem como eu acho que escreveria se tivesse continuado a escrever quando o meu barroquismo formal deu lugar ao que chamei de «barroco interiorizado».

A obra de Amândio Reis tem três livros encenados: Spinalonga (2019), Pterodáctilo (2020), Antilha (2022). Vendo o corpo inteiro, percebo que motivos circulam entre eles, títulos que viajam e copiam ou variam, dias repetidos, palavras que regressam, julgo que em tempos ele me disse que eram contemporâneos, só se espalharam por três anos por razões editoriais. Vendo o corpo inteiro, penso também que a ordem poderia ter sido a oposta, com as devidas consequências, claro (história, especulação, autodeterminação, presságio são ínfimas gradações de luz). Voámos de que ilha para que ilha, em que sentido? É transição ou afirmação? O leitor não sabe, não tem de saber: «Ter / é pior do que não ter. Dizer / é pior do que negar. Tocar / é pior do que ver. Saber / é pior do que supor.» E, no centro de Antilha, a mesma metáfora ______

Não sairás incólume da pulsão
entrecruzada dos líquidos frios
e quentes, se o plasma intracelular
tiver sido ionizado, radiográfico.
«Um mero braço partido», julgavas,
sem saber que, daquele instante em diante,
passara o teu braço a ser uma asa.
Os átomos instáveis atravessam
o espaço e atingem-te a medula óssea.
Então, com unhadas sonsas e arranhões,
partem a aliança frágil do ADN,
transportando pra cima a mutação.
(…)

5.

José de Ribera, El tacto (1615-16); ver melhor aqui.

6. Uma escolha muito pessoal de seis curtas e longas da década de 1980, para terminar

, Taxi zum Klo – Taxi to the Toilet (Frank Ripploh 1980)

, Querelle (Rainer Werner Fassbinder 1982)

, Desert Hearts (Donna Deitch 1985)

, La ley del deseo – Law of Desire (Pedro Almodóvar 1987)

, Pedagogue (Stuart Marshall 1988)

, Coming Out (Heiner Carow 1989)

Todos os filmes são sobre professores, alguns mais literais do que outros. Ou, se quiserem, sobre aprender versus desaprender. Todas as personagens têm várias vidas, o que vai para além da mera dicotomia público / privado. O último, do ano em que eu nasci, foi o filme que estreou no Kino International, em Berlim Leste, na mesma noite em que o Muro viria a cair: premonição ou resposta?

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