Absurda, brilhante e esfomeada


1. Preâmbulo: mea culpa, mea maxima culpa. Desta vez fui mau aluno. Não consegui ler o livro que vamos discutir na sessão deste mês do grupo de leitura da Odete e da Cursed Assembly, que a livraria recebe já este domingo. Mas que isso não seja desculpa para não aparecerem, caso vos tenha acontecido o mesmo. Para que não fiquem dúvidas, toda a gente é bem-vinda, tenha ou não tenha lido o livro: aliás, se saírem daqui com vontade de o ler, já não perderam a tarde. Esta semana, vamos conversar sobre Babel-17, de Samuel R. Delany. O que orientou a escolha dos livros deste grupo de leitura, disse-nos a Odete na primeira sessão (além de serem todos livros dela, livros importantes e escritos para ela: porque todos os livros que amamos foram escritos só para nós), foi uma ideia muito simples: que mundos são possíveis quando a pessoa a imaginá-los não é um homem branco, heterossexual & cisgénero? Há a impressão de que os mundos imaginados por esses homens são todos iguais (tecnológicos, estéreis, pós-apocalípticos) e que os livros que os descrevem são como campanhas de guerra, como cartas de defesa ou de ataque. (Que é também uma espécie de fixação do mercado editorial: o pau do guerreiro. Ainda há pouco foi por cá re-editado o von Clausewitz; e o Sun Tzu, esse, há em várias edições e nunca esgota, porque não há melhor livro de auto-ajuda para o homem de negócios: o homem que faz e que não deixa nada por fazer, contra tudo e contra todos. Já pensaram que negócio vem de não-ócio? Que há pessoas para quem produtivo e lucrativo é a mesma coisa? Não é triste? Enfim, perdi-me. Os estrategas diriam que saí de casa sem trazer o mapa.) Se assumirmos, então, que esses mundos imaginários são todos iguais, que mundos outros podemos nós imaginar? Delany é um homem gay, afro-americano, e está vivo ainda: tem agora 80 anos. Em 1966, publicou este livro sobre linguagem, isto é, sobre os processos que do mundo criam linguagem e da linguagem mundo. Como eu escrevia há duas semanas, quando ainda achava que ia ler o livro, o mundo cabe nos limites que a linguagem lhe dá e é dentro desses limites que o lemos. Se tivermos consciência disso e de que a linguagem é plástica, o mundo pode ser aquilo que a linguagem deixar. (A propósito, dia 2 de abril temos cá o curso de linguagem inclusiva da Laura Falésia e do André Tecedeiro. Tenho uma boa e uma má notícia. A má notícia: o curso já não tem vagas. A boa notícia: teremos uma segunda data daqui a poucos meses.)

2. (Por falar em andar sem mapa: há umas semanas, uma amiga querida, senhora nossa, disse que estas cartas eram escritas-passeio. Gostámos tanto. Isto para dizer: obrigado por continuarem a ler-nos e a seguir-nos, mesmo sem saberem muito bem para onde vamos. Nem nós sabemos muitas vezes. E obrigado por aceitarem que isto é mais do que uma lista de compras.)

3. Trouxe de Vigo um livro de um escritor galego. (Mas não um livro em galego. Fica para outra altura uma conversa sobre a tentativa dos regimes absolutistas e totalitários de destruir as várias línguas dos seus países, de querer forçar a toda a gente a língua do centro, a língua do poder: não vão eles, os galegos, os bascos, os catalães, atrever-se a pensar noutras línguas e a imaginar outras Espanhas.) Ramón del Valle-Inclán era galego, mas escrevia em castelhano. Nos anos vinte do século passado, escreveu este texto, o tal que eu trouxe de Vigo. Luces de Bohemia é um primeiro exemplo de uma forma de escrever teatro criada por Valle-Inclán: o esperpento. A palavra já existia no dicionário: significava algo de grotesco, de deformado. Valle-Inclán pega e faz dela projeto: o esperpento “consiste en buscar el lado cómico en lo trágico de la vida” porque “[l]a tragedia nuestra no es tragedia”. É dentro da própria peça que o projeto é explicado. O protagonista, o poeta Max Estrella, cego, “desconocido y negado”, atira-se a uma última viagem ao fim da noite. Já quase no fim desse passeio do condenado, Max diz: “El esperpentismo lo ha inventado Goya.” (Já voltamos a ele.) “Los héroes clásicos han ido a pasearse en el callejón del Gato.” Está a falar da Calle de Álvarez Gato, no centro de Madrid, que tinha então, à porta de uma retrosaria, um par de espelhos, um côncavo e um convexo, como os das feiras populares, para divertimento dos clientes. “Los héroes clásicos reflejados en los espejos cóncavos dan el Esperpento. El sentido trágico de la vida española sólo puede darse con una estética sistemáticamente deformada. (…) Las imágenes más bellas en un espejo cóncavo son absurdas. (…) La deformación deja de serlo cuando está sujeta a una matemática perfecta. Mi estética actual es transformar con matemática de espejo cóncavo las normas clásicas. (…) [D]eformemos la expresión en el mismo espejo que nos deforma las caras y toda la vida miserable de España.” Fala a personagem pelo autor. Mas além desse côncavo e convexo, em que Valle-Inclán vê a sorte da bárbara Ibéria, há outro convexo na peça, outro espelho aquoso: o olho do cego, que reflete mas não vê, ou vê ainda melhor. É através das imagens refletidas nesse convexo, nessa poética distorcida, que Max percorre, pela última vez, as ruas e os lugares de Madrid.

4. Quando, na Idade Média, a Igreja finalmente permitiu (absorvendo, claro: e controlando) que o teatro, essa coisa de saltimbancos, parasse e enchesse as praças em dias de festa, era em passeio ou em procissão (como nas estações da cruz) que o público lia aquela Bíblia de carne. Cada guilda apresentava a sua cena (a mesma todos os anos, aquela que lhes cabia em responsabilidade) em cima de uma carroça das muitas paradas à volta da praça, e era com os pés que o público via os ciclos deste teatro religioso: uma cena de cada vez e, entre elas, uma dúzia de passos. Na viragem do século XX, o teatro simbolista e expressionista, do qual Valle-Inclán é filho bastardo, há-de recuperar a ideia dessa via, agora profana, passando para o protagonista o dever (ou a sentença) de andar, de ligar com os pés os diferentes quadros.

La romería de San Isidro, Francisco de Goya, c. 1819-23.

Goya, que tanto pintou o grotesco e o cruel, pinta esta outra procissão, esta cobra de preto pelo meio da serra: uma das suas pinturas negras, feitas entre 1819 e 1823 (cem anos antes deste Valle-Inclán) nas paredes da sua casa perto de Madrid, a Quinta del Sordo. Negras porque pintam a noite escura da alma (como já dissera outro espanhol) ou o esgar ao canto dos lábios: o feio, o manco, o escancarado, a boca sem dentes.

Christ’s Entry Into Brussels in 1889, James Ensor, 1888.

Quase setenta anos depois, já o Impressionismo tinha vindo e ido e enquanto não chegava o Expressionismo (se bem que, nas técnicas e nos temas, Goya e outros já apontem para ele), James Ensor, um pintor belga, pinta outra procissão: esta uma entrada triunfal, uma festa, um projeto (falho, é certo) de salvação. (O meu Thomas Bernhard gostava tanto do Ensor: chama-o muitas vezes pelo nome no Minetti, a mais clara, a mais negra, a mais límbica das suas peças de máscaras.) Ensor era obcecado por máscaras: porque elas moldam o rosto, o alteram, o escondem e o revelam, o fixam. E porque lhe dão o rigor do ricto: o rigor e o castigo. É aqui, nestas praças de Bruxelas, nestas ruas serpentinas de Madrid, que a festa se encontra com a morte. Não nos esqueçamos de como, muitos séculos antes, a Idade Média pintou a cegueira da peste, que a todos cortava por igual: e a morte veio e levou-os em fila, um atrás do outro; e eles foram a dançar.

5. A renovação do teatro espanhol entre-guerras deve-se a dois homens: Valle-Inclán e outro senhor de flor ao peito, um andaluz, Federico García Lorca. Se o teatro do primeiro está a meio caminho entre o simbolismo cruel de Strindberg ou Wedekind e o absurdo lógico de Ionesco, Adamov e outros, o de García Lorca é primo do surrealismo de Buñuel, contemporâneo seu. Mas se nas suas peças mais conhecidas (as da trilogia rural, Bodas de sangue, Yerma e A casa de Bernarda Alba) encontramos o surrealismo negro, macabro, de quando Buñuel vai a Las Hurdes filmar a terra sem pão, nas peças que as antecedem vemos um outro surrealismo: onírico, simbólico, metateatral. É a outra trilogia de García Lorca, El público, Así que pasen cinco años, e a incompleta Comedia sin título: o seu teatro impossível, como ele dizia, ou irrepresentável. El público, por exemplo: às portas da morte, num sonho ou não, um encenador serve-se do teatro para ensaiar a sua homossexualidade. Faz o Romeu e Julieta e chama dois atores homens para o par dos amantes. Quando os espectadores percebem que estão perante um elogio do amor homossexual, levantam-se e matam os atores. E, no último quadro, o encenador encontra-se com a Morte. Ganhou o público burguês, como ganharam os nacionalistas de Franco: García Lorca foi morto a tiro, também por ser homossexual.

6. Passou este mês no Batalha (duas vezes) um filme do Almodóvar de que gosto tanto (tanto) e para o qual escrevi a folha de sala. No fim desse texto, falo (na diagonal) do esperpento, do espelho recurvo virado à realidade, da deformação sistemática (isto é, como sistema): porque nos anos da transição democrática, os que se seguiram ao fim do Franquismo, naqueles dias de euforia e má-criação e todas as liberdades, naqueles dias das noites de Madrid, os espelhos côncavos e deformadores do Callejón del Gato parecem voltar a encontrar um uso, já não como crítica a uma certa sociedade (de críticos estava toda a gente farta, depois de trinta e muitos anos de ditadura), mas como devolução (no sentido em que um espelho devolve sempre uma imagem) de todas as possibilidades, melhores ou piores, mais ou menos distorcidas. Almodóvar e os outros filhos das noites de Madrid, pelo menos nos primeiros anos do seu cinema (e o Batalha vai dedicar em maio um ciclo a esses filmes dos anos 70 e 80), arrancam da parede o grotesco espelho, põem-no em frente a outro espelho igual, viram o espelho contra o espelho, e dentro desse túnel, desse torto reflexo, cantam e dançam e fodem e gritam: recusam o viver triste. Ou seja, quiçá: de Valle-Inclán guardam o espelho, e de Lorca a flor. Que flor é esta de formas estranhas, flor de sangue, torcida, venenosa, feia flor e melhor que todas as flores? É a flor de sermos o que queremos ser, grotescos e tudo.

Boa semana,
r

(P.S.: Depois de ler isto, o Paulo deu-me este poema. Dou-o a vocês também.)

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